São Paulo, segunda-feira, 22 de janeiro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ANA LUCIA BUSCH

Sem internet no Butão

MANTER O ANONIMATO na internet pode servir a uma dezena de interesses, mais ou menos nobres.
Parece razoável evitar perseguições pessoais ao despejar na rede informação sobre a situação de países sob regimes políticos restritivos. Pode ser conveniente integrar um grupo de discussão para alcoólatras em recuperação sem que se conheça o autor de cada comentário publicado.
A idéia de preservar a identidade em nome de segurança e privacidade agrada. Mas e-mails gratuitos ou forjados também são recurso útil para espalhar o ódio racial, ameaçar quem quer que seja ou praticar crimes de toda espécie. O anonimato não deixa de ser, assim, um trunfo e uma danação. Mas tentar resolver problemas atacando o direito de ser anônimo parece tão ingênuo quanto inócuo.
Obrigar a identificação dos usuários de internet, por exemplo, seria um ataque violento à liberdade primordial da rede, além de ser um modo incapaz de deter abusos, diante do caráter aberto, descentralizado e internacional do meio. Crimes continuariam a ser cometidos; cidadãos comuns seriam submetidos a constrangimento capaz de inibir a expressão livre de idéias.
O conceito não é novo. Em 1991, Phil Zimmermann, criador do mais popular programa de encriptação de e-mails, já professava: "Quando a privacidade se tornar crime, só os criminosos terão privacidade". Continua com a razão.
Mas não deixa de ser interessante pensar como o cidadão que defende de forma visceral os meandros da vida privada acaba ele mesmo se tornando, voluntária ou involuntariamente, presa fácil da ausência de privacidade: cadastra dados para comprar seus CDs preferidos, faz ligações telefônicas por internet ou publica um perfil completo de si para quem quiser ler.
Não há necessariamente algum mal nisso. Apenas estimula a curiosidade sobre quais seriam as conseqüências de uma hipotética fusão entre uma grande loja virtual e um provedor de acesso de peso. E desses dois com um gigantesco site de buscas. E do cruzamento do completíssimo banco de dados que resultaria disso com as informações contidas em um site de relacionamento. E de tudo isso com os dados coletados pelo maior operador de cartões de crédito do planeta. Somem-se os resultados de exames médicos disponíveis na rede e o rastreamento promovido por chips instalados nas placas dos carros.
Que grupo organizado ou governo seria capaz de resistir a tamanho poder de informação? Nesse exercício de futurologia, privacidade é coisa do passado.
Que tal mudar-se antes para um monastério isolado no Butão? Sem internet, claro.

ana.busch@folha.com.br


ANA LUCIA BUSCH é diretora-executiva da Folha Online e da Publifolha.


Texto Anterior: Rio de Janeiro - Mário Magalhães: "La revolución permanente'
Próximo Texto: Frase

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.