São Paulo, domingo, 22 de fevereiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Banho de samba no Carnaval

RUY CASTRO e HELOISA SEIXAS

O grande sucesso do Carnaval carioca de 2004 é o samba-enredo que o Império Serrano cantará amanhã na avenida: "Aquarela Brasileira", música e letra de Silas de Oliveira, e já apresentado no Carnaval de, com perdão da palavra, 1964. Sim, isso mesmo. Nos últimos dois meses, esse samba tem sido cantado todas as noites em algum ponto do Rio: nos eufóricos ensaios do Império no próprio sambódromo; nos shows do sambista Rhichad na gafieira Carioca da Gema; no programa "Sem Censura", da TVE, interpretado até por sambistas de outras escolas; e nas calçadas de qualquer birosca da cidade onde role uma roda de samba, o que significa quase todas.



Mais uma vez, é o samba voltando para "salvar" o Carnaval. Mas quem disse que ele precisava ser salvo?



Mais uma vez, é o samba voltando para "salvar" o Carnaval. Mas quem disse que ele precisava ser salvo? E desde quando? O argumento de que o Carnaval acabou porque "não se fazem mais marchinhas", por exemplo, ignora que o Carnaval das marchinhas só existiu de 1930 a 1960 -muito pouco numa história que pode ser contada, com documentos, desde 1840. As marchinhas foram apenas um ciclo do Carnaval, assim como o do tipo de música que as sucedeu e que, agora, também está em xeque: os sambas-enredo. Nos últimos vinte anos, as escolas os reduziram à indigência melódica e poética, em nome de um monumentalismo que enche os olhos, mas não alimenta os ouvidos. A consagração de "Aquarela Brasileira" traz a esperança de que a música volte a ser importante no desfile, fazendo-o tomar a cidade e, por extensão, o país.
A letra de "Aquarela Brasileira" não difere muito das platitudes ufanistas que até hoje se fazem, exceto que Silas as escreveu sozinho, sem dar parceria ao bicheiro, ao traficante, ao chefe do esquema ou ao dono do boteco. Já sua melodia é a prova de que nada substitui a beleza e a originalidade para que uma escola desfile orgulhosa do que está cantando. Se nada mais acontecer nos próximos três dias, o Carnaval de 2004 será lembrado por essa trilha sonora que o Império foi buscar no passado. Outras três escolas também irão reapresentar sambas-enredo clássicos, e isso pode indicar uma tendência -a de que o desfile quer voltar a ter grande música. Em Nova York, acontece algo parecido: a Broadway também tem pedido socorro à tradição (ao reviver velhas glórias como "Chicago", "Gypsy" e "Annie Get Your Gun"), na tentativa de se livrar da ditadura dos efeitos especiais e reeducar a platéia para as canções bem-feitas.
Não será surpresa se isso der mais certo na Sapucaí do que na Broadway. Em seu livro "Na Roda do Samba", de 1934, o lendário cronista Vagalume já dizia: "Não saiu ainda ninguém do Carnaval para salvar o samba. Mas, do samba, têm saído os grandes enfermeiros do Carnaval". Como se vê, a idéia de que o Carnaval vive "doente" é velha assim como suas milagrosas recuperações, sempre administradas por injeções de samba. E o Rio está protagonizando uma emocionante revitalização do ritmo que é a espinha dorsal da música brasileira. Mais do que nunca, em anos, ele deixou de ser a música dos puristas e nostálgicos e está se tornando a música da juventude. Tem sido um banho de samba.
De dezembro para cá, a cidade assiste a uma enxurrada de shows com sambas de todas as épocas, apresentados por bambas de alto calibre. Moacyr Luz e convidados lotaram o Canecão. A cantora Joyce levou o Ballroom a fazer jus ao nome ao som de sua Gafieira Moderna. As casas noturnas da Lapa -o Carioca da Gema, o Armazém 161 (onde foi lançado o CD "Memorável Samba", do sensacional cantor Marcos Sacramento), o Rio Scenarium, o Dama da Noite e outras também caíram no samba, incluindo apresentações de velhas-guardas das principais escolas. E é o samba que sacode todas as noites uma velha gafieira da praça Tiradentes, convertida no Centro Cultural Carioca. Nomes como Monarco, Xangô da Mangueira, dona Ivone Lara, Wilson Moreira, Nelson Sargento, Elton Medeiros, Aldir Blanc, Moacyr Luz, Martinho da Vila, Walter Alfaiate, Paulinho da Viola, Beth Carvalho, Cristina Buarque, Roberto Silva, Zeca Pagodinho e Teresa Cristina fazem agora parte de uma aristocracia popular carioca, tendo as mãos beijadas por jovens e velhos onde quer que apareçam.
Mas a grande novidade têm sido os ensaios técnicos das escolas no próprio Sambódromo. Durante anos, as alas "ensaiavam" separadamente, com os componentes se reunindo em churrascos na casa do "presidente de ala" para tirar as medidas das fantasias e aprender o samba. Já os "ensaios" nas quadras serviam apenas para as pessoas se divertirem e darem algum lucro às escolas com a venda de ingressos. As escolas entravam na avenida sem um único ensaio de verdade e só na hora H o carnavalesco tinha idéia do que seria o desfile. Agora é diferente. Os ensaios no Sambódromo, com dia e hora marcados para cada escola, tudo muito organizado, de graça e com lotação esgotada, são quase um desfile para valer, com milhares sambando e cantando soltos, sem fantasia, sem compromisso, na arquibancada ou no asfalto. Todo mundo se esbaldando, como manda o verdadeiro espírito do Carnaval.
Some a isso os mais de cem bailes que já estão acontecendo (60 deles populares, nas praças, patrocinados pela prefeitura) e os cerca de 200 blocos e bandas cobrindo a cidade e pode-se ter certeza de que, para o carioca, o Carnaval de 2004 será infernal.
Um Carnaval como não se via há muito tempo. Desde, precisamente, 2003.

Ruy Castro, 55, e Heloisa Seixas, 51, são escritores.


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