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MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO
Remédios
e venenos
A MENTIRA política conjura
medo e esperança: recorrer
a um deles é gerar o outro.
Lucrécio desafiou esse círculo fatídico: em seus poemas, a ciência suprime a superstição (no ápice, o
medo da morte) e anula a credulidade (a esperança nas sanções do
além). Desarmando dogmatismos,
permeou a cultura moderna. Hoje,
às avessas desse pensamento e de
seus herdeiros, o saber acentua
paixões, em prol da propaganda.
Quimeras são encenadas pelo
atual governo dos EUA, concebidas
nas capelas universitárias adeptas
de teses conservadoras como as de
Leo Strauss. Já sob Reagan, um estudioso de Platão (M.F. Burnyeat)
vê, na base de seu prestígio, as academias onde instalaram-se seus
"alunos e os alunos de seus alunos". Hoje, análises eruditas e investigações jornalísticas ligam
Strauss à ultradireita européia e
aos "neocons" americanos.
A Universidade de Chicago, sede
de Strauss, foi canteiro dos ideólogos que ramificaram em outros
campi, teceram a rede de "think
tanks" dentro e em torno da Presidência, radicalizaram as teses de
Strauss. Este visou o ensino a "gentis-homens", aos "poucos", menosprezando a educação de massa. A
premissa da "verdade escondida"
no texto filosófico e de sua leitura
esotérica, apta a captar o ensino em
círculo fechado, inspira a noção de
que o segredo e o engano entranham-se na vida e no texto políticos. A mentira lastreia a política no
mundo tomado pelo mal e pela
guerra perene, com predomínio do
mais forte.
Na análise da "nobre mentira"
(República), Strauss elude o seu
contexto, referido a momento particular na gênese da cidade e ao
treino do jovem guerreiro. O artífice aristocrático a transmite, em espaço e tempo determinados, a indivíduos singulares. Nem seria diferente: a retórica modula as palavras e define as almas que visa atingir. Ao revés, Strauss generaliza a
ficção e a propaganda, supondo-as
necessárias "não apenas para
crianças pequenas mas para cidadãos adultos na cidade boa". Isto
rebaixa, no homem feito, a razão e
o juízo segundo a verdade (o que
destruiria o projeto platônico).
Essa exegese da mentira e do autoritarismo serve aos intelectuais
ciosos de poder, não raro ligados a
corporações, experientes nos ardis
das igrejas universitárias. Mas suas
práticas têm limites: mentiram para fazer a guerra, abusaram do medo ao terrorismo e da esperança
em rápida vitória. Frustram-se essas expectativas, mortes proliferam, segredos vazam, críticas antibélicas multiplicam-se, o processo
eleitoral muda o Congresso. A
mentira é, no dizer de Platão, remédio e veneno. Talvez espetáculos desatinados levem o "povo soberano" a se pronunciar; nas tragédias ocultas ele silencia.
sylvia.franco@uol.com.br
MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO escreve às
quintas-feiras nesta coluna.
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