São Paulo, quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

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MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO

Remédios e venenos

A MENTIRA política conjura medo e esperança: recorrer a um deles é gerar o outro.
Lucrécio desafiou esse círculo fatídico: em seus poemas, a ciência suprime a superstição (no ápice, o medo da morte) e anula a credulidade (a esperança nas sanções do além). Desarmando dogmatismos, permeou a cultura moderna. Hoje, às avessas desse pensamento e de seus herdeiros, o saber acentua paixões, em prol da propaganda.
Quimeras são encenadas pelo atual governo dos EUA, concebidas nas capelas universitárias adeptas de teses conservadoras como as de Leo Strauss. Já sob Reagan, um estudioso de Platão (M.F. Burnyeat) vê, na base de seu prestígio, as academias onde instalaram-se seus "alunos e os alunos de seus alunos". Hoje, análises eruditas e investigações jornalísticas ligam Strauss à ultradireita européia e aos "neocons" americanos.
A Universidade de Chicago, sede de Strauss, foi canteiro dos ideólogos que ramificaram em outros campi, teceram a rede de "think tanks" dentro e em torno da Presidência, radicalizaram as teses de Strauss. Este visou o ensino a "gentis-homens", aos "poucos", menosprezando a educação de massa. A premissa da "verdade escondida" no texto filosófico e de sua leitura esotérica, apta a captar o ensino em círculo fechado, inspira a noção de que o segredo e o engano entranham-se na vida e no texto políticos. A mentira lastreia a política no mundo tomado pelo mal e pela guerra perene, com predomínio do mais forte.
Na análise da "nobre mentira" (República), Strauss elude o seu contexto, referido a momento particular na gênese da cidade e ao treino do jovem guerreiro. O artífice aristocrático a transmite, em espaço e tempo determinados, a indivíduos singulares. Nem seria diferente: a retórica modula as palavras e define as almas que visa atingir. Ao revés, Strauss generaliza a ficção e a propaganda, supondo-as necessárias "não apenas para crianças pequenas mas para cidadãos adultos na cidade boa". Isto rebaixa, no homem feito, a razão e o juízo segundo a verdade (o que destruiria o projeto platônico).
Essa exegese da mentira e do autoritarismo serve aos intelectuais ciosos de poder, não raro ligados a corporações, experientes nos ardis das igrejas universitárias. Mas suas práticas têm limites: mentiram para fazer a guerra, abusaram do medo ao terrorismo e da esperança em rápida vitória. Frustram-se essas expectativas, mortes proliferam, segredos vazam, críticas antibélicas multiplicam-se, o processo eleitoral muda o Congresso. A mentira é, no dizer de Platão, remédio e veneno. Talvez espetáculos desatinados levem o "povo soberano" a se pronunciar; nas tragédias ocultas ele silencia.

sylvia.franco@uol.com.br


MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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