São Paulo, sexta-feira, 22 de março de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Uma questão de bom senso

GABRIEL CHALITA

Platão, filósofo grego, conta em um de seus textos um mito sobre pessoas que ficavam acorrentadas em uma caverna, de costas para a entrada. Havia fogo fora da caverna e pessoas com objetos passavam de um lado para o outro. Os homens dentro da caverna viam apenas as sombras... E continua o mito.
O mito tem vários significados; um deles é a não-acomodação. É preciso arrebentar as correntes, sair da caverna, enfrentar o mundo tal qual ele se apresenta e mudar o que deve ser mudado. Isso, profetizava o filósofo, exige coragem e ação. Ver o mundo por meio das sombras é mais fácil, mas menos nobre.
A Febem precisava mudar. A Febem mudou e é completamente diferente da escola de criminalidade do passado. A Febem continua o seu curso de mudanças na certeza de que o governo do Estado de São Paulo tem vontade política suficiente para recuperar os adolescentes que estão sob sua responsabilidade.
Não se podem negar os dados concretos dessa transformação. Hoje, a Febem tem 47 cursos técnicos nas áreas de informática, panificação, hidroponia, mecânica, costura -entre outros- e mais 110 oficinas culturais. Além disso, todas as 57 unidades dispõem de ensino fundamental e médio, exatamente como determina a lei, ou seja, os 4.700 internos estão estudando.
Por tudo isso, lamentamos o fato de algumas pessoas não considerarem o incentivo à cultura, à educação e ao esporte uma prática imprescindível para a recuperação de adolescentes em conflito com a lei.


A Febem precisava mudar; a Febem mudou e é completamente diferente da escola de criminalidade do passado


Em crítica feita neste espaço, no dia 18 de março, o presidente da Fundação Abrinq, Hélio Mattar, demonstrou um ceticismo totalmente avesso ao que a Febem necessita neste momento: credibilidade e confiança da sociedade para transformar seus jovens em cidadãos ("Muito pouco a comemorar", pág. A3). É uma pena, uma vez que a instituição que preside representa muito na luta pelos direitos das crianças e dos adolescentes. Seria bom tê-lo como aliado.
A crítica à prática de esportes dentro das unidades não é pertinente. A Febem oferece 32 modalidades esportivas, que vão do futebol ao xadrez. Recentemente, três dos 800 adolescentes que têm aulas de xadrez nas unidades participaram do campeonato estadual . Em fevereiro, a mobilização ficou por conta do Festival de Música Canta Febem, envolvendo 450 jovens, e resultou na gravação de um CD. A Febem tem como compromisso levar a dança, a música e o teatro aos jovens, explorando suas potencialidades nas mais diversas áreas.
Ainda neste ano, um grupo de adolescentes irá à Espanha a convite do Consulado Espanhol de São Paulo, para a apresentação da peça "Dom Quixote - Num lugar de la Mancha".
O incentivo à escrita também acontece na Febem. Em maio será lançado o livro "Cartas à Minha Mãe", contendo cartas que os jovens internos escreveram a suas mães.
Isso mostra que acreditamos no afeto e no vínculo familiar como instrumental de recuperação e inclusão na sociedade. Nosso interesse em relação ao desenvolvimento do jovem faz com que busquemos, também, caminhos alternativos, como aulas de meditação e yoga, já implantadas na unidade da Mooca. O objetivo é reduzir a agressividade e proporcionar maior equilíbrio emocional. Temos poesia e temos ação.
Nas sendas da transformação, o governo do Estado não tem medido esforços para assegurar a dignidade desses adolescentes. No ano passado foram inauguradas 11 novas unidades e mais 11 serão entregues ainda neste ano. Estamos trabalhando na desativação da unidade de Parelheiros, justamente por entendermos seus problemas.
Sabemos que nenhuma mudança é fácil. Mas estamos dispostos a enfrentar qualquer adversidade. Agenda educativa, proximidade com a família, pequenas unidades; isso é vontade política, é ação. A posição cômoda de apenas criticar não contribui para a reintegração social desses jovens.
Estamos lançando o programa de Apadrinhamento das Unidades. Algumas já têm organizações e instituições parceiras que visam levar seus funcionários a ter contato com o adolescente da Febem. Esse é um sinal de que nosso trabalho tem bases sólidas. Temos a consciência de que estamos no caminho certo, embora saibamos que vícios e erros de décadas não podem ser extintos da noite para o dia. Estamos abertos às críticas construtivas, é claro, mas, neste momento, precisamos ainda mais do apoio e da confiança de todos. Só assim transformaremos a história da Febem, contribuindo para a construção de uma sociedade melhor. Só assim romperemos os grilhões da caverna.
Fora da caverna há luz, esperança, vida. Lembremos Kierkegaard quando disse que "a vida só pode ser entendida olhando para trás, mas só pode ser vivida olhando para a frente". Esse é o nosso intento. Mãos à obra, porque as palavras são levadas pelo vento e aquilo de que o adolescente precisa vento nenhum pode levar.


Gabriel Chalita, 32, professor de direito da PUC-SP, doutor em direito e em comunicação e semiótica, é Secretário da Juventude, Esporte e Lazer do Estado de São Paulo.



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