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Histórias do Zeca
BORIS FAUSTO
Zeca é um guarda-noturno que se orgulha da profissão e preza sua liberdade de circular. Em vez de ficar encerrado em uma caixa de fibrocimento, percorre de bicicleta o quarteirão sob sua
vigilância e vai cortando o relativo silêncio da noite com apitos de advertência.
Se alguém imaginar que estamos
diante de um personagem decorativo,
estará completamente enganado. Zeca
enfrentou marginais por várias vezes,
acertou alguns tiros nos "maus elementos" e já foi parar no Hospital das
Clínicas, ao defender a segurança e o
sono de seus clientes. Só não ousa lidar
com prostitutas e travestis que infestam o bairro pois, como explicou aos
moradores, não sabe bem como tratar
com esses personagens, dos quais prefere guardar distância em nome da
moral.
Quando vim morar no bairro, já encontrei Zeca, o que significa que ele aí
trabalha há mais de 35 anos. Nessa
época, desentendeu-se com um proprietário, pois o homem queria impor-lhe um relógio de ponto. Suprema
ofensa para quem é extremamente
pontual, não falha nunca -haja ou
não enchentes- e ainda faz rodízio
dos dias de folga para dificultar os cálculos dos bandidos.
A grande inflação dos primeiros anos
90 pegou-o de surpresa. Ele revia a
contribuição dos clientes a cada seis
meses, sofrendo, evidentemente, pesadas perdas. Quando alguns moradores
observaram-lhe que estava sendo prejudicado, invocou uma relação contratual: tinha combinado assim, como ia
agora mudar? O bolso vazio falou mais
alto, e Zeca acabou partindo para uma
revisão mensal. O salto causou estranheza, tanto mais porque os valores
subiam todos os meses. Ao lhe pedirem explicações, esclareceu que, como
havia uma grande quantidade de índices, baseava-se, a cada mês, em um deles, naturalmente o que lhe era mais
favorável.
Concentrado no esforço de criar uma
família numerosa, Zeca se interessa vagamente pela política, da qual tem
uma visão pragmática. Não deixa porém de sofrer seu impacto, até mesmo
no plano da linguagem. Quando um
colega de outro quarteirão foi despedido, no início dos anos 70, ele comentou meio aflito que "compadre Mané
tinha sido cassado".
Contrário a apostas arriscadas, ajudou a eleger e a reeleger Fernando
Henrique, por quem chegou a ter entusiasmo. Hoje, o prestígio presidencial anda a seus olhos meio arranhado,
envolto em uma dúvida básica: "Será
que o homem consegue segurar a inflação?"
Zeca é um homem do sertão baiano,
que nunca perdeu essa característica
em tantos anos de permanência em
São Paulo. Qual será sua opção quando
deixar de trabalhar? Pelo entusiasmo
da narrativa de suas viagens de férias a
Queimados, onde todos o recebem
com festas e onde tem uma boa área de
terra, aposto no retorno dele e da mulher -uma pessoa decidida e nada
submissa, como o estereótipo suporia.
E já vejo o Zeca, em seus últimos anos,
contando as histórias loucas de São
Paulo, essa cidade em que criou dignamente os filhos e gastou suas melhores
energias.
Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.
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