São Paulo, Segunda-feira, 22 de Março de 1999
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Histórias do Zeca

BORIS FAUSTO

Zeca é um guarda-noturno que se orgulha da profissão e preza sua liberdade de circular. Em vez de ficar encerrado em uma caixa de fibrocimento, percorre de bicicleta o quarteirão sob sua vigilância e vai cortando o relativo silêncio da noite com apitos de advertência.
Se alguém imaginar que estamos diante de um personagem decorativo, estará completamente enganado. Zeca enfrentou marginais por várias vezes, acertou alguns tiros nos "maus elementos" e já foi parar no Hospital das Clínicas, ao defender a segurança e o sono de seus clientes. Só não ousa lidar com prostitutas e travestis que infestam o bairro pois, como explicou aos moradores, não sabe bem como tratar com esses personagens, dos quais prefere guardar distância em nome da moral.
Quando vim morar no bairro, já encontrei Zeca, o que significa que ele aí trabalha há mais de 35 anos. Nessa época, desentendeu-se com um proprietário, pois o homem queria impor-lhe um relógio de ponto. Suprema ofensa para quem é extremamente pontual, não falha nunca -haja ou não enchentes- e ainda faz rodízio dos dias de folga para dificultar os cálculos dos bandidos.
A grande inflação dos primeiros anos 90 pegou-o de surpresa. Ele revia a contribuição dos clientes a cada seis meses, sofrendo, evidentemente, pesadas perdas. Quando alguns moradores observaram-lhe que estava sendo prejudicado, invocou uma relação contratual: tinha combinado assim, como ia agora mudar? O bolso vazio falou mais alto, e Zeca acabou partindo para uma revisão mensal. O salto causou estranheza, tanto mais porque os valores subiam todos os meses. Ao lhe pedirem explicações, esclareceu que, como havia uma grande quantidade de índices, baseava-se, a cada mês, em um deles, naturalmente o que lhe era mais favorável.
Concentrado no esforço de criar uma família numerosa, Zeca se interessa vagamente pela política, da qual tem uma visão pragmática. Não deixa porém de sofrer seu impacto, até mesmo no plano da linguagem. Quando um colega de outro quarteirão foi despedido, no início dos anos 70, ele comentou meio aflito que "compadre Mané tinha sido cassado".
Contrário a apostas arriscadas, ajudou a eleger e a reeleger Fernando Henrique, por quem chegou a ter entusiasmo. Hoje, o prestígio presidencial anda a seus olhos meio arranhado, envolto em uma dúvida básica: "Será que o homem consegue segurar a inflação?"
Zeca é um homem do sertão baiano, que nunca perdeu essa característica em tantos anos de permanência em São Paulo. Qual será sua opção quando deixar de trabalhar? Pelo entusiasmo da narrativa de suas viagens de férias a Queimados, onde todos o recebem com festas e onde tem uma boa área de terra, aposto no retorno dele e da mulher -uma pessoa decidida e nada submissa, como o estereótipo suporia. E já vejo o Zeca, em seus últimos anos, contando as histórias loucas de São Paulo, essa cidade em que criou dignamente os filhos e gastou suas melhores energias.


Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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