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São Paulo, quinta-feira, 22 de maio de 2003

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OTAVIO FRIAS FILHO

Chegou a hora

Parece cada vez mais comum que governos se elejam com uma plataforma e governem com outra. Sempre foi assim, mas, se a cisão aumentou, é porque ela reflete as tensões entre democracia e mercado, dois entes que deveriam reforçar-se, ao menos em tese, um ao outro. Na prática, nunca foram tão antagônicos. Como tantos governos pelo mundo, o de Lula tenta se equilibrar entre ambos. O mercado exige regras claras, condições estáveis e a menor restrição possível para os agentes realizarem lucros. Quase todo governo está atualmente empenhado em atender tais reivindicações, dado o peso que a atividade financeira desempenha na economia; todos competem para atrair recursos e essa competição mesma explica a queda de tantos limites (legais, corporativos, tarifários) outrora impostos à liberdade do capital. A cada quatro anos, porém, a grande maioria que não tem acesso ao admirável mundo dos mercados dispõe do poder fulminante de derrubar governos que a tenham decepcionado. As políticas que favorecem os mercados tendem a punir os setores mais tradicionais da economia, relegar a produção a segundo plano e impor sacrifícios ainda maiores a uma população já historicamente sacrificada. Cria-se um ciclo, assim, em que candidatos mais convincentes ao prometer "mudança de modelo" galvanizam o entusiasmo, sempre disponível, das maiorias flutuantes. Para governar sem levar os respectivos países à insolvência, porém, esses governantes são tentados a dançar conforme a música financeira. Trocam de lugar com a oposição não apenas no sentido físico mas também mental. É difícil distinguir, na ideologia dos mercados, que aspectos traduzem um avanço nas concepções de administração pública e que outros significam apenas colocar o Estado a serviço dos interesses da especulação financeira, externa e doméstica. Controle da inflação, equilíbrio fiscal e respeito aos orçamentos estão com certeza entre os primeiros. Até por sua natureza técnica, porém, deveriam ser conciliáveis com políticas diferentes. Aquela ideologia considera que esquerda e direita são posições ultrapassadas, que emergiu da ciência econômica um saber objetivo, indiscutível. Sem dúvida o debate se tornou mais técnico e menos ideológico. Sem dúvida as teses da esquerda foram desmoralizadas na prática. Isso não quer dizer que os interesses em conflito tenham desaparecido nem que deixaram de se fantasiar de ciência exata. Talvez a principal tarefa de um governo como o do PT fosse distinguir, nessa ideologia, o que é irrecusável do que é propriamente ideológico. Em tese, é o que ele está fazendo; na prática, limita-se até agora a repetir o governo anterior na economia e a repetir seus próprios chavões nas áreas de contrapartida social. Em algum momento vai-se constatar que o rei está nu.
 
Já se está se tornando hábito. Um candidato a prefeito (ou governador) se elege e herda o descalabro deixado pela gastança do antecessor. Tem de conter suas ambições, obedecendo a um gestor austero, que reequilibre as finanças devastadas. Então chega a hora de o novo governante empreender a própria gastança, para se reeleger a todo custo. Chegou a hora, portanto, de o secretário João Sayad deixar a equipe da prefeita Marta Suplicy.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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