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Violência no Irã
Repressão de sábado mostra a face brutal do regime e expõe divórcio entre a elite fossilizada e um novo país que emerge
NA ESTRUTURA em que
se sustenta o regime
iraniano, o aiatolá ungido com a liderança
suprema deveria manter distância de assuntos mundanos. Preservaria, assim, seu status de árbitro celestial: em momentos de
incerteza, toda a nação se dobraria à sua autoridade.
A palavra do aiatolá Ali Khamenei, contudo, foi desafiada há
uma semana, quando a maior
onda de protestos em 30 anos de
república islâmica tomou as ruas
e o fez recuar do endosso afoito à
reeleição do presidente Mahmoud Ahmadinejad. Concedeu-se a recontagem de 10% dos votos, o que não dissipou a revolta.
Na sexta, Khamenei parece ter
cruzado o seu rubicão. Lançou
ultimato aos descontentes, prometendo violenta repressão caso
insistissem em voltar às ruas. Teve de cumprir a palavra, pois foi
novamente desafiado, no sábado, por multidões. Com as mãos
do aiatolá sujas de sangue, toda a
face brutal do regime se exibe para sua própria população. Saiu de
cena o patriarca que paira acima
dos homens comuns, substituído
pelo autocrata disposto a tudo
para sobreviver politicamente.
O governo do Irã tenta, como
sempre, culpar potências estrangeiras pelo conflito. Mal consegue disfarçar, contudo, que esta é
uma disputa de poder na camada
dirigente do regime. Os adversários de Khamenei não defendiam, ao menos no início do processo, nenhuma mudança ou
abertura substanciais. Pertencem ao pequeno grupo que, desde 1979, controla o governo do
Irã. Mir Hossein Mousavi, o candidato que pede a anulação do
pleito de 12 de junho, privava da
amizade do aiatolá Ruhollah
Khomeini, o comandante da revolução islâmica e do país até sua
morte, em 1989.
Quem veio de fora desse núcleo tradicional, paradoxalmente, foi Mahmoud Ahmadinejad.
O presidente populista e linha
dura refletiu a chegada ao círculo
dirigente de setores das Forças
Armadas, como veteranos da
guerra com o Iraque, que ganhavam força na sociedade iraniana.
Adensou-se a disputa pelo poder,
a qual, no Irã, também espelha
um embate, travado entre grupos bem postados no Estado, pela renda do petróleo e do gás.
A corrida eleitoral explicitou e
acirrou a polarização, que era latente, entre esse grupo emergente alinhado a Ahmadinejad e a fatia moderada da liderança tradicional -encabeçada pelos ex-presidentes Akbar Rafsanjani e
Mohammad Khatami-, que
convergiu para a chapa de Mousavi. O aiatolá Khamenei, que já
se inclinava para o primeiro polo, passa a depender mais do
apoio da corporação militar e da
guarda pretoriana do regime.
O maciço descontentamento
popular, entretanto, também é
uma variável nova no Irã. Aí se
podem notar, de fato, o questionamento de aspectos centrais do
regime e o clamor por abertura
maior, a qual talvez nem Mousavi esteja disposto a oferecer.
O Irã mudou nesses 30 anos.
Urbanizou-se depressa, a economia mais que triplicou, ampliou-se o acesso a serviços de bem-estar, como saúde e educação, básica e superior. Mais da metade da
população não era nascida quando Khomeini liderou a revolução. A fossilizada autocracia iraniana parece em desacordo com
a nação que emerge.
Nesse divórcio, a violência de
Estado surge com último recurso -receita certa para a tragédia.
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