São Paulo, segunda-feira, 22 de junho de 2009

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Violência no Irã

Repressão de sábado mostra a face brutal do regime e expõe divórcio entre a elite fossilizada e um novo país que emerge

NA ESTRUTURA em que se sustenta o regime iraniano, o aiatolá ungido com a liderança suprema deveria manter distância de assuntos mundanos. Preservaria, assim, seu status de árbitro celestial: em momentos de incerteza, toda a nação se dobraria à sua autoridade.
A palavra do aiatolá Ali Khamenei, contudo, foi desafiada há uma semana, quando a maior onda de protestos em 30 anos de república islâmica tomou as ruas e o fez recuar do endosso afoito à reeleição do presidente Mahmoud Ahmadinejad. Concedeu-se a recontagem de 10% dos votos, o que não dissipou a revolta.
Na sexta, Khamenei parece ter cruzado o seu rubicão. Lançou ultimato aos descontentes, prometendo violenta repressão caso insistissem em voltar às ruas. Teve de cumprir a palavra, pois foi novamente desafiado, no sábado, por multidões. Com as mãos do aiatolá sujas de sangue, toda a face brutal do regime se exibe para sua própria população. Saiu de cena o patriarca que paira acima dos homens comuns, substituído pelo autocrata disposto a tudo para sobreviver politicamente.
O governo do Irã tenta, como sempre, culpar potências estrangeiras pelo conflito. Mal consegue disfarçar, contudo, que esta é uma disputa de poder na camada dirigente do regime. Os adversários de Khamenei não defendiam, ao menos no início do processo, nenhuma mudança ou abertura substanciais. Pertencem ao pequeno grupo que, desde 1979, controla o governo do Irã. Mir Hossein Mousavi, o candidato que pede a anulação do pleito de 12 de junho, privava da amizade do aiatolá Ruhollah Khomeini, o comandante da revolução islâmica e do país até sua morte, em 1989.
Quem veio de fora desse núcleo tradicional, paradoxalmente, foi Mahmoud Ahmadinejad. O presidente populista e linha dura refletiu a chegada ao círculo dirigente de setores das Forças Armadas, como veteranos da guerra com o Iraque, que ganhavam força na sociedade iraniana. Adensou-se a disputa pelo poder, a qual, no Irã, também espelha um embate, travado entre grupos bem postados no Estado, pela renda do petróleo e do gás.
A corrida eleitoral explicitou e acirrou a polarização, que era latente, entre esse grupo emergente alinhado a Ahmadinejad e a fatia moderada da liderança tradicional -encabeçada pelos ex-presidentes Akbar Rafsanjani e Mohammad Khatami-, que convergiu para a chapa de Mousavi. O aiatolá Khamenei, que já se inclinava para o primeiro polo, passa a depender mais do apoio da corporação militar e da guarda pretoriana do regime.
O maciço descontentamento popular, entretanto, também é uma variável nova no Irã. Aí se podem notar, de fato, o questionamento de aspectos centrais do regime e o clamor por abertura maior, a qual talvez nem Mousavi esteja disposto a oferecer.
O Irã mudou nesses 30 anos. Urbanizou-se depressa, a economia mais que triplicou, ampliou-se o acesso a serviços de bem-estar, como saúde e educação, básica e superior. Mais da metade da população não era nascida quando Khomeini liderou a revolução. A fossilizada autocracia iraniana parece em desacordo com a nação que emerge.
Nesse divórcio, a violência de Estado surge com último recurso -receita certa para a tragédia.


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