|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OTAVIO FRIAS FILHO
Retorno do reprimido
Estamos acostumados a pensar
que a política deveria ser racional.
Compreendemos as paixões que a disputa costuma suscitar e relevamos
certa taxa de demagogia inevitável nos
candidatos. Mas tendemos a considerar, ao menos em tese, que, quanto
mais reduzida for a influência de elementos irracionais na decisão final,
melhor será a sua qualidade.
Partidos e programas de governo
deveriam ter mais peso do que candidatos e promessas feitas a esmo. A decisão do eleitor deveria ser tomada
após criteriosa comparação entre os
programas, levando-se em conta as
prioridades que cada um deles traduz
e as condições de implantá-lo num
contexto em que os recursos são finitos e o Estado está depauperado.
Essas noções decorrem do senso comum de que a razão é melhor guia do
que a emoção. A própria existência da
política, com todas as suas mazelas, é
indicativo disso: em vez de os conflitos
serem resolvidos pela força, passam a
ser mediados por lutas simbólicas, de
acordo com regras preestabelecidas
que todos os participantes em princípio se dispõem a respeitar.
Nem é preciso dizer que essa política
puramente conceitual tem valor efetivo para uma parcela influente, mas
pequena, do eleitorado. A grande
maioria não dispõe de tempo, inclinação e critério para praticar os atos de
discernimento que a racionalidade
política prescreve. Torna-se presa fácil
de apelos passionais, de lances de impacto, de promessas ilusórias.
Mas a maioria se move, ou seja, não
é impermeável à auto-educação que a
experiência eleitoral produz. Episódios como o Plano Cruzado e o governo Collor tiveram evidente efeito pedagógico. Isso não significa que a demagogia desaparece, mas que suas
formas grosseiras são repelidas, dando lugar a manifestações mais elaboradas. A duras penas, a razão avança.
Acontece que a política não se presta
às provas da ciência exata. Ou seja, é
possível encontrar duas pessoas igualmente "esclarecidas" e que tenham seguido os mesmos procedimentos de
análise racional para chegar a duas
conclusões opostas. Mesmo dentro da
suposta racionalidade política, resta
espaço para opções que são, digamos,
intuitivas, para não dizer irracionais.
Ocorre no âmbito da cultura política
a mesma coisa que no da psicologia
individual: o componente irracional
de nossos impulsos pode ser contido,
domesticado, deslocado, mas não suprimido. Os psicanalistas falam em
"retorno do reprimido"; é bem disso
que se trata, pois os conteúdos voltam
sob nova roupagem, que desfigura,
sem anular, seus traços de origem.
A "racionalidade" política, com tudo o que há de questionável na aplicação do termo ao caso concreto, tem sido a marca do tucanato e um dos estigmas sobre o seu candidato. Já o rival
imediato, Ciro Gomes, movimenta-se
melhor no campo das emoções coletivas -não por acaso seu formulador,
Mangabeira Unger, é um teórico da
política como paixão.
O governador Tasso Jereissati disputou a candidatura tucana na condição
de pré-candidato. Foi derrotado, com
certa truculência, por José Serra. Declarou-se então um "político de partido", que acataria a escolha, sem demonstrar entusiasmo por ela. Mas foi
deslizando para o apoio, já agora aberto, a seu aliado Ciro Gomes. Fidelidade partidária, pero no mucho...
Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.
Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: O carro usado Próximo Texto: Frases Índice
|