São Paulo, quinta-feira, 22 de agosto de 2002

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OTAVIO FRIAS FILHO

Retorno do reprimido

Estamos acostumados a pensar que a política deveria ser racional. Compreendemos as paixões que a disputa costuma suscitar e relevamos certa taxa de demagogia inevitável nos candidatos. Mas tendemos a considerar, ao menos em tese, que, quanto mais reduzida for a influência de elementos irracionais na decisão final, melhor será a sua qualidade.
Partidos e programas de governo deveriam ter mais peso do que candidatos e promessas feitas a esmo. A decisão do eleitor deveria ser tomada após criteriosa comparação entre os programas, levando-se em conta as prioridades que cada um deles traduz e as condições de implantá-lo num contexto em que os recursos são finitos e o Estado está depauperado.
Essas noções decorrem do senso comum de que a razão é melhor guia do que a emoção. A própria existência da política, com todas as suas mazelas, é indicativo disso: em vez de os conflitos serem resolvidos pela força, passam a ser mediados por lutas simbólicas, de acordo com regras preestabelecidas que todos os participantes em princípio se dispõem a respeitar.
Nem é preciso dizer que essa política puramente conceitual tem valor efetivo para uma parcela influente, mas pequena, do eleitorado. A grande maioria não dispõe de tempo, inclinação e critério para praticar os atos de discernimento que a racionalidade política prescreve. Torna-se presa fácil de apelos passionais, de lances de impacto, de promessas ilusórias.
Mas a maioria se move, ou seja, não é impermeável à auto-educação que a experiência eleitoral produz. Episódios como o Plano Cruzado e o governo Collor tiveram evidente efeito pedagógico. Isso não significa que a demagogia desaparece, mas que suas formas grosseiras são repelidas, dando lugar a manifestações mais elaboradas. A duras penas, a razão avança.
Acontece que a política não se presta às provas da ciência exata. Ou seja, é possível encontrar duas pessoas igualmente "esclarecidas" e que tenham seguido os mesmos procedimentos de análise racional para chegar a duas conclusões opostas. Mesmo dentro da suposta racionalidade política, resta espaço para opções que são, digamos, intuitivas, para não dizer irracionais.
Ocorre no âmbito da cultura política a mesma coisa que no da psicologia individual: o componente irracional de nossos impulsos pode ser contido, domesticado, deslocado, mas não suprimido. Os psicanalistas falam em "retorno do reprimido"; é bem disso que se trata, pois os conteúdos voltam sob nova roupagem, que desfigura, sem anular, seus traços de origem.
A "racionalidade" política, com tudo o que há de questionável na aplicação do termo ao caso concreto, tem sido a marca do tucanato e um dos estigmas sobre o seu candidato. Já o rival imediato, Ciro Gomes, movimenta-se melhor no campo das emoções coletivas -não por acaso seu formulador, Mangabeira Unger, é um teórico da política como paixão.
O governador Tasso Jereissati disputou a candidatura tucana na condição de pré-candidato. Foi derrotado, com certa truculência, por José Serra. Declarou-se então um "político de partido", que acataria a escolha, sem demonstrar entusiasmo por ela. Mas foi deslizando para o apoio, já agora aberto, a seu aliado Ciro Gomes. Fidelidade partidária, pero no mucho...


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.



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