São Paulo, quinta-feira, 22 de agosto de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A geopolítica das drogas e sua face oculta

WÁLTER FANGANIELLO MAIEROVITCH

Organizações não-governamentais de prestígio internacional estão trabalhando na preparação de um importante e crítico informativo sobre os motivos do insucesso da ONU no trato do fenômeno das drogas ilícitas. Estão sendo analisadas as convenções e as assembléias especiais da ONU, a partir do Protocolo de Paris, de 1948.
Esses instrumentos celebrados foram chamados de "convenções dos mais fortes". Neles, prevaleceu a estratégia norte-americana de retumbante fracasso na redução do consumo e de muito sucesso para encobrir os interesses hegemônicos, estratégicos e econômicos. A respeito, basta lembrar as suas bases militares instaladas a título de enfrentamento do narcotráfico. Estão localizadas em Manta (Equador), Iquitos (Peru), Aruba (Caribe) e Curaçao (Antilhas), onde estão estacionadas modernas aeronaves de guerra e espionagem.
Interessante notar, no particular, ter a agência norte-americana antidrogas, Drug Enforcement Administration (DEA), com base em informações transmitidas por uma das bases mencionadas, interceptado com a polícia da Nicarágua um navio de bandeira brasileira transportando 8 toneladas de cocaína pura, vendida pelos cartéis colombianos à máfia russa. No Brasil, não se soube dessa ocorrência.
O pior dessas convenções decorre da impossibilidade de alterações sem que haja unanimidade dos Estados-membros. Como os EUA, os países islâmicos e os escandinavos têm igual postura; torna-se impossível a mudança de qualquer convenção em vigor, ainda que pareceres contrários sejam apresentados pela OMS (Organização Mundial da Saúde). Assim, ainda prevalecem as rígidas posturas criminalizantes para redução da demanda por drogas, as autoritárias regras para obrigar os consumidores a tratamentos centrados na total abstinência e a militarização para aniquilar os centros de cultivo e produção.
Para fiscalizar e opinar sobre o cumprimento das convenções, foi instituído o International Narcotics Control Board (INCB), em 1961. O INCB acabou de reclamar do que chamou de "novas estratégias de tolerância", adotadas em Portugal, na Espanha, na Itália, em Luxemburgo, na Bélgica e no Reino Unido. Condenou as políticas da Holanda e da Suíça, pois divorciadas do previsto nas convenções, especialmente nas de 1961 e 1988.


As associações criminosas transnacionais triplicaram a área de cultivo de coca na Colômbia


Por evidente, o INCB notou que vários países da Europa Ocidental abandonaram a linha norte-americana convencionada e trilharam outros e diferentes caminhos. Exemplo disso foram as adoções de práticas sociossanitárias de redução de riscos e danos -sem obrigar abstinência de uso de droga- e, também, a despreocupação criminal com a maconha, rompendo-se com a proibição estabelecida nas convenções.
Incomodou a INCB, ainda, a legislação portuguesa, que deixou de criminalizar a posse de drogas para uso próprio, considerada só infração administrativa.
O informativo crítico em preparação deverá circular em março do próximo ano. Será debatido em encontros de ONGs e enquanto os Estados-membros da ONU estiverem analisando os resultados conseguidos após cinco anos da Assembléia Especial sobre Drogas, ocorrida em 1998. A agência da ONU sobre prevenção ao crime e controle de drogas (UNOCCP) conduzirá o evento oficial, já com seu novo diretor, o italiano Antonio Maria Costa.
Na esfera não-governamental há esperança de um papel ativo do novo diretor da UNOCCP no combate aos "senhores do crime e das drogas". Segundo Alison Jamieson, especialista escocesa em criminalidade organizada mafiosa, os últimos levantamentos do FMI concluíram que "perto de US$ 1 trilhão, provenientes de atividades criminosas, circulam diariamente nos mercados financeiros".
Tal movimentação resulta da nova estrutura organizacional das associações criminosas, conectadas numa "network" planetária. Basicamente, o cartelito cuida dos financiamentos, incluídos os dos insumos químicos para a composição das drogas sintéticas e refino de cocaína e heroína. As "firmas" cuidam dos laboratórios de produção, dos recursos humanos, do transporte e das entregas. Compete à direção administrar a distribuição da droga pela rede, bem como realizar a lavagem do dinheiro e a reciclagem do capital limpo em atividades formalmente lícitas.
Como se pode notar, os chefões dos cartelitos permanecem inatingíveis e, agora, a droga sintética virou o grande negócio. Confirmou-se, assim, o alerta dado pela UNOCCP em 1996, qual seja, de que as sintéticas seriam as drogas mais difundidas do século 21.
Os três grandes centros produtores de drogas sintéticas estão localizados nos EUA, na Europa Ocidental e no Sudeste Asiático. As apreensões policiais giram em torno de 5% a 10% do colocado no mercado. Os dados sobre apreensões são poucos confiáveis, mas servem para algumas constatações. Pelos últimos números levantados, relativos ao biênio 1997/98, no Reino Unido, foram sequestrados 3 milhões de drágeas. A Holanda apreendeu 1,5 tonelada de cápsulas e as polícias norte-americanas, 1,7 tonelada.
Por outro lado, as associações criminosas transnacionais triplicaram a área de cultivo de coca na Colômbia, graças às novas técnicas agrícolas introduzidas, apesar das fumigações sob patrocínio norte-americano. A criminalidade organizada cuidou, ainda, de experimentar plantios de coca na Geórgia, na ilha de Samoa e na República Democrática do Congo (ex-Zaire). Mais ainda, continua a lavagem do dinheiro sujo nos grande centros "on shore", como Miami e Nova York.
Em síntese, a paralela reunião de ONGs em Viena contribuirá para importantes esclarecimentos, em época de aumento de narco-Estados, de países cúmplices, de elites políticas sustentadas pelos narcodólares e de novas e seguras rotas de distribuição.


Wálter Fanganiello Maierovitch, 55, juiz aposentado do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, é presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Giovanne Falcone e professor visitante da Universidade Georgetown, de Washington (EUA). Foi secretária nacional antidrogas da Presidência da República (1999-2000).



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