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TENDÊNCIAS/DEBATES
Marinheiro sem rumo nem vento ajuda
FÁBIO KONDER COMPARATO
Na novela da CPMF, tudo foi dito sobre o
cenário e os personagens, mas nada sobre o que
está por trás da cena
NA NOVELA da CPMF que se
arrasta há mais de ano, tudo
foi dito sobre o cenário e os
personagens, mas nada sobre o que
está por trás da cena.
O governo federal demonstra matematicamente que, sem a prorrogação da falsa contribuição provisória, o
Orçamento da União de 2008 será deficitário. Os empresários, por sua vez,
deblateram contra o peso excessivo
da carga tributária.
Mas ninguém -no governo, na
oposição ou na imprensa- aponta a
verdadeira causa desses desconchavos; menos ainda denuncia os vilões
da história e identifica as vítimas.
Tomemos o exercício financeiro de
2006. O serviço da dívida pública
(amortização do capital e pagamento
de juros) custou ao país R$ 158 bilhões; vale dizer, quase o quádruplo
do (falso) déficit da Previdência Social que o governo atual e o anterior
sempre apontaram como a causa do
nosso descontrole financeiro.
Analogamente, entre 2002 e 2006,
as despesas orçamentárias da União
no campo da saúde, para o qual se
destinariam integralmente os recursos arrecadados com a CPMF quando
foi criada, representaram menos de
um quarto do total dos gastos com a
dívida pública. As referentes à educação, pouco mais de 10%.
Quem ganha e quem perde com
isso?
De um lado, como ninguém ignora,
a maioria absoluta dos brasileiros depende, para sobreviver, da Previdência Social, do SUS (Sistema Único de
Saúde) e da escola pública.
De outro lado, os clientes exclusivos do sistema de dívida pública são
os bancos e um punhado de aplicadores. Dentre estes, ocupam lugar de
destaque os que possuem domicílio
fiscal no exterior, pois são simultaneamente beneficiados com juros
dentre os mais elevados do mundo,
com a desvalorização contínua do dólar e com a isenção tributária. Realmente, o brasileiro não é xenófobo.
Será necessário indagar qual dos
dois grupos, o de cima e o de baixo,
arca com as inevitáveis reduções de
verbas para alcançar o equilíbrio do
Orçamento?
Examinemos o sistema tributário.
Sobre quem recai o maior peso dos
impostos, indispensáveis para fazer
face ao serviço da dívida pública? Sobre os empresários? Não. O Brasil fez
nesse particular uma opção preferencial pelos pobres: 70% da massa de
impostos e assimilados são indiretos,
vale dizer, regressivos e transmissíveis ao consumidor final. O que significa que os despecuniados contribuem muito mais do que os ricos para
financiar os gastos públicos.
Diante desse quadro, como explicar
a paz social e política que reina entre
nós, em contraste com a turbulência
verificada na Venezuela, na Bolívia e
no Equador?
Entra aí o talento sem par do nosso
chefe de Estado. Lula encontrou a
fórmula genial para contentar os dois
extremos da sociedade brasileira:
submeteu a política econômica do
país ao controle do presidente (perdão, "governor") do Banco Central e
criou ao mesmo tempo o Bolsa Família, com extraordinária economia de
recursos e marcantes efeitos eleitorais. O programa de auxílio aos pobres representou, no ano passado, 5%
dos juros pagos aos detentores de títulos da dívida pública. Cumpriu-se
assim, grotescamente, a palavra evangélica: a todo aquele que tem, muito
mais lhe será dado.
Vale a pena, no entanto, ainda aí,
enxergar atrás da cena. Há mais de
um quarto de século, a média de crescimento econômico do Brasil é inferior à da América Latina, o que constitui um fato inédito em nossa história.
A classe média desagrega-se rapidamente: entre 2002 e 2006, a renda
dos que ganham de três a dez salários
mínimos decresceu 46%. Entre 1992
e 2004, o desemprego formal aumentou 80%. A subserviência ao capitalismo financeiro internacional deu início a um processo de desindustrialização precoce.
Dir-se-á, porém, que a recente descoberta de um extenso lençol petrolífero no litoral santista mudará em
pouco tempo esse panorama sombrio. Pura ilusão! Sem a quebra de
nossa oligarquia política e econômica, reproduziremos, na melhor das hipóteses, o destino dos países petrolíferos do Oriente Médio: ricos por fora
e dilacerados por dentro.
Eis por que, diante do desnorteamento do Estado, entidades prestigiosas, como a OAB e a CNBB, em associação com movimentos populares,
têm insistido na urgência de uma reforma política republicana e democrática, que atribua enfim ao povo
uma soberania efetiva, e não apenas
simbólica, e ponha o bem comum da
nação brasileira sempre acima dos interesses particulares.
Reencontraremos o rumo perdido
ou continuaremos a navegar à deriva?
FÁBIO KONDER COMPARATO, 71, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, é presidente da Comissão de Defesa da República e da Democracia do Conselho Federal da OAB. É autor, entre outras obras, de "Ética - Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno".
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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