São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 2002

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UM ANO DEPOIS

Os argentinos foram às ruas para relembrar os dramáticos acontecimentos de 19 e 20 de dezembro de 2001. Naqueles dias, uma imensa onda nacional de protestos culminou na morte de mais de 30 pessoas e na renúncia do então presidente Fernando de la Rúa. Um ano se passou, mas a Argentina ainda está longe de ter equacionado os principais problemas que contribuíram para a "débâcle". O país segue sendo tratado como uma espécie de pária da globalização.
A ruína do "currency board" não significou apenas a derrocada da política econômica introduzida dez anos antes pelo então ministro Domingo Cavallo e, a não ser no breve período que antecedeu sua implosão, incessantemente aplaudida pela nata dos financistas globais. Ela evidenciou um mal mais amplo e mais profundo, relacionado à incapacidade das instituições políticas argentinas de cumprir seu papel básico de defender os interesses da nação.
Durante uma década os governantes daquele país abriram mão de manter uma moeda nacional sob o argumento, em si mesmo frágil, de que a hiperinflação havia esfacelado a confiança dos argentinos no peso. Delegou-se a tarefa de determinar a quantidade de moeda em circulação no país aos humores e à arbitrariedade do mercado financeiro internacional. Isso sem embargo da desnacionalização selvagem implementada sob Carlos Saúl Menem, a qual, para citar um exemplo, chegou a indexar tarifas públicas à inflação observada nos Estados Unidos.
Um ano depois da queda de De la Rúa, os credores internacionais continuam dando as costas à Argentina. Até mesmo as instituições multilaterais, cujo papel é justamente o de prover financiamento de "última instância", tratam o país como um estorvo. O FMI exige condições draconianas para oferecer uma ajuda modestíssima ao governo argentino. Enquanto isso, dramas sociais inéditos na Argentina, como as mortes por desnutrição e a galopante criminalidade, se abatem sobre o país que, há algumas décadas, era o modelo mais próximo, na América do Sul, de um Estado de Bem-Estar Social.
Sem crédito, a Argentina vai realizando um dos ajustes econômicos mais drásticos de que se tem notícia. Um megassuperávit no comércio externo traz dólares à custa de uma retração, neste ano, da ordem de 10% do Produto Interno Bruto. E, vale lembrar, 2002 será o quarto ano recessivo seguido no país platino. Somente neste mês o ministro da Economia, Roberto Lavagna, "decretou", talvez com excesso de otimismo, o fim do ciclo depressivo.
A mobilização popular que acabou por defenestrar Domingo Cavallo e Fernando de la Rúa evidenciou os limites de uma política que prolongadamente impõe desemprego e desalento. Mas ainda é muito arriscado dizer que os eventos de 19 e 20 de dezembro de 2001 liberaram energias suficientes para renovar as bases em que tem tradicionalmente se sustentado o poder político no país vizinho. Talvez o resultado das eleições presidenciais, previstas para o final de abril do próximo ano, ajude a responder a essa questão.


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