São Paulo, sábado, 22 de dezembro de 2007

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RODRIGO RÖTZSCH

Kirchner com rímel

UM PROGRAMA de humor da televisão argentina ironizou a posse de Cristina Fernández de Kirchner com um bastão presidencial "sui generis"; seu interior ocultava um kit de maquiagem.
Soa como simples piada machista contra a primeira mulher eleita presidente da Argentina, mas trai a essência do segundo governo Kirchner: mudanças, se houver, serão cosméticas.
Os estereótipos traçados pela imprensa argentina descrevem Néstor Kirchner como um homem preocupado com minúcias internas e sem paciência para questões protocolares da diplomacia internacional. A isso atribuem o isolamento da Argentina durante seu governo.
Cristina, por sua vez, seria mais cosmopolita; interessada em conhecer o mundo e desfilar em cenários internacionais, embora antes de chegar à Casa Rosada só conhecesse do exterior as lojas de Miami e Nova York. Somada à sua promessa de promover a "reinserção internacional" da Argentina, essa imagem criou a expectativa de mudanças ao menos em política exterior.
A análise ruiu já na primeira semana de governo. Uma investigação da Justiça americana foi recebida como ataque dos EUA à soberania nacional pela presidente e todo o governo argentino. Falou-se em política suja, em operações de inteligência e até o embaixador Earl Wayne foi chamado a se explicar. Se não bastasse, o próprio Kirchner fez seu discurso de estréia como ex-presidente subindo o tom e pondo gasolina no fogo que Wayne tentara apagar. Ao contrário do que disse o diplomata, rebateu o primeiro-cavalheiro, as relações com os EUA não vão nada bem.
Já Hugo Chávez, aquele de quem Cristina pretenderia se afastar, ao contrário, só recebeu afagos. A tal "equação energética"" que não fecha é a justificativa para a argentina defender a torto e a direito a incorporação da Venezuela ao Mercosul. Na cúpula desta semana, em Montevidéu, prometeu concluir esse processo em seu período na presidência pro tempore do bloco -que termina em junho-, como se dela dependesse, e não do Congresso brasileiro.
Na mesma cúpula, enquanto Cristina e Chávez comandavam a artilharia verbal contra os EUA, Lula dizia que os culpados pelas falências do Mercosul são os próprios governantes sul-americanos e que não se deve transferir a responsabilidade pela inoperância do bloco aos EUA. Falou, literalmente, outra língua que a da mais nova sócia do bloco, numa demonstração de que a pregada "aliança estratégica" entre os dois países pode ficar só na conversa. Até porque algumas diferenças não podem ser corrigidas na base do rímel.


RODRIGO RÖTZSCH é correspondente da Folha em Buenos Aires.


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