São Paulo, quinta-feira, 23 de fevereiro de 2006

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DEMÉTRIO MAGNOLI

Tribunal dos "homens bons"

O coronel Ubiratan Guimarães, comandante direto da chacina do Carandiru, cumpriu inicialmente o papel de fusível: o "sacrifício" do policial assegurou a impunidade do ex-secretário de Segurança Pedro de Campos e do ex-governador Luiz Antonio Fleury, seus superiores na cadeia hierárquica. Guimarães ingressou na carreira política, ao abrigo do PTB de Fleury, e tornou-se deputado estadual. O mandato parlamentar, que lhe garante foro privilegiado, representa o credo bárbaro de parte da sociedade segundo o qual o Estado tem o direito de executar os pobres sem nem sequer julgá-los (lembre-se: entre os presos chacinados, alguns não tinham sido condenados).
Os desembargadores do Tribunal de Justiça (TJ) de São Paulo que absolveram Guimarães, invertendo decisão de primeira instância, não necessariamente compartilham desse credo. O desembargador Walter de Almeida Guilherme, cujo voto orientou a maioria, negou indignado a tese de que se realizou um julgamento político. Seu colega, Ruy Camilo, classificou a decisão como "corajosa" por não se curvar ao "clamor popular". Eles insistiram na natureza "técnica" da decisão e sugeriram que a juíza da primeira instância é que manipulou, por motivos políticos, a decisão condenatória.
As hábeis declarações dos desembargadores buscam o efeito útil de organizar o debate em torno do tema da "justiça cega". Eles querem ser criticados por não cederem ao (real ou imaginário) "clamor popular", algo que é vedado à Justiça no Estado de Direito, pois assim ocultam o verdadeiro sentido de seu veredicto. A maioria que absolveu Guimarães insurge-se contra o instituto do Tribunal do Júri, isto é, contra a vigência da "lei das gentes".
No julgamento original, os jurados decidiram que o réu agiu "no estrito cumprimento do dever" e, em seguida, que praticou "excesso doloso". Os juízes do TJ identificaram a aparente contradição lógica, anularam a segunda decisão e absolveram o réu. Provavelmente, deturparam o Código Penal. Mas, com certeza, o que fizeram foi negar a capacidade de expressão informada e consciente dos jurados. Eles usurparam a voz do júri popular e falaram em seu nome, "corrigindo" paternalmente o "engano" dos que não têm a propriedade do saber.
O Tribunal do Júri procede, nas sociedades ocidentais, da Magna Carta, que, na Inglaterra do século 13, conferiu aos homens livres o direito de serem julgados por seus pares, e não pelo rei. No seu alicerce, está o princípio de que a justiça é um patrimônio comum, uma tora flutuante que sustenta a todos, ricos e pobres, sábios ou não. Os cidadãos comuns que sentam no banco do júri são os "juízes do fato" e julgam soberanamente; aos juízes togados compete apenas auxiliá-los, traduzindo suas decisões na linguagem do direito.
A Folha provou, entrevistando-os, que os jurados do julgamento original de Guimarães entenderam o que lhes era argüido e proferiram decisões conscientes, cujo sentido era de condenar o réu. Ao inverter o sentido do que disse o júri popular, os veneráveis desembargadores do TJ escrevem um manifesto político que equivale a uma insurreição contra a igualdade jurídica dos cidadãos. Eles se levantam contra as leis do país e seqüestram o direito, pretendendo convertê-lo em patrimônio dos "homens bons". É caso de polícia.


Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras nesta coluna.
@ - magnoli@ajato.com.br


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