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DEMÉTRIO MAGNOLI
Tribunal dos "homens bons"
O coronel Ubiratan Guimarães,
comandante direto da chacina do
Carandiru, cumpriu inicialmente o
papel de fusível: o "sacrifício" do policial assegurou a impunidade do ex-secretário de Segurança Pedro de Campos e do ex-governador Luiz Antonio
Fleury, seus superiores na cadeia hierárquica. Guimarães ingressou na carreira política, ao abrigo do PTB de
Fleury, e tornou-se deputado estadual. O mandato parlamentar, que lhe
garante foro privilegiado, representa o
credo bárbaro de parte da sociedade
segundo o qual o Estado tem o direito
de executar os pobres sem nem sequer
julgá-los (lembre-se: entre os presos
chacinados, alguns não tinham sido
condenados).
Os desembargadores do Tribunal de
Justiça (TJ) de São Paulo que absolveram Guimarães, invertendo decisão
de primeira instância, não necessariamente compartilham desse credo. O
desembargador Walter de Almeida
Guilherme, cujo voto orientou a
maioria, negou indignado a tese de
que se realizou um julgamento político. Seu colega, Ruy Camilo, classificou
a decisão como "corajosa" por não se
curvar ao "clamor popular". Eles insistiram na natureza "técnica" da decisão e sugeriram que a juíza da primeira instância é que manipulou, por
motivos políticos, a decisão condenatória.
As hábeis declarações dos desembargadores buscam o efeito útil de organizar o debate em torno do tema da
"justiça cega". Eles querem ser criticados por não cederem ao (real ou imaginário) "clamor popular", algo que é
vedado à Justiça no Estado de Direito,
pois assim ocultam o verdadeiro sentido de seu veredicto. A maioria que
absolveu Guimarães insurge-se contra
o instituto do Tribunal do Júri, isto é,
contra a vigência da "lei das gentes".
No julgamento original, os jurados
decidiram que o réu agiu "no estrito
cumprimento do dever" e, em seguida, que praticou "excesso doloso". Os
juízes do TJ identificaram a aparente
contradição lógica, anularam a segunda decisão e absolveram o réu. Provavelmente, deturparam o Código Penal. Mas, com certeza, o que fizeram
foi negar a capacidade de expressão
informada e consciente dos jurados.
Eles usurparam a voz do júri popular e
falaram em seu nome, "corrigindo"
paternalmente o "engano" dos que
não têm a propriedade do saber.
O Tribunal do Júri procede, nas sociedades ocidentais, da Magna Carta,
que, na Inglaterra do século 13, conferiu aos homens livres o direito de serem julgados por seus pares, e não pelo rei. No seu alicerce, está o princípio
de que a justiça é um patrimônio comum, uma tora flutuante que sustenta
a todos, ricos e pobres, sábios ou não.
Os cidadãos comuns que sentam no
banco do júri são os "juízes do fato" e
julgam soberanamente; aos juízes togados compete apenas auxiliá-los, traduzindo suas decisões na linguagem
do direito.
A Folha provou, entrevistando-os,
que os jurados do julgamento original
de Guimarães entenderam o que lhes
era argüido e proferiram decisões
conscientes, cujo sentido era de condenar o réu. Ao inverter o sentido do
que disse o júri popular, os veneráveis
desembargadores do TJ escrevem um
manifesto político que equivale a uma
insurreição contra a igualdade jurídica dos cidadãos. Eles se levantam contra as leis do país e seqüestram o direito, pretendendo convertê-lo em patrimônio dos "homens bons". É caso de
polícia.
Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras
nesta coluna.
@ - magnoli@ajato.com.br
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