São Paulo, sábado, 23 de fevereiro de 2008

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FERNANDO DE BARROS E SILVA

Sucata nacional

SE TIVESSE que eleger um traço para distinguir os anos Lula, diria que eles têm sido marcados pelo rebaixamento da vida nacional. A começar pelo sucateamento da esperança, tudo de alguma forma se nivelou por baixo. É curiosa, aliás, a realização histórica do slogan da campanha petista: o desassombro com que se foi ao pote pelo menos até a descoberta do mensalão -e tenho dúvidas de que algo substantivo tenha mudado- basta para constatar que temor, neste governo, só do mercado.
"A esperança venceu o medo" funciona mais ou menos como o "caçador de marajás", slogan de Collor que já prenunciava, para quem soubesse ler nas entrelinhas, o desmantelamento do Estado que seu governo iria levar a cabo.
Os ventos, porém, sopram a favor de Lula. Tudo melhorou -é o que mais se ouve por aí. Muito bem. Pergunto se a ladainha oficial não seria, antes, a expressão do cinismo dos vitoriosos e recém-convertidos diante das evidências de que não vamos mais nos tornar uma sociedade decente, como um dia essa turma já pretendeu.
Soa muito abstrato? Um tanto ingênuo? Tome-se, então, um só aspecto da vida nacional -as relações entre o poder e a imprensa. Aqui não se trata mais de nivelamento por baixo, mas de regressão.
Foi perguntado ao presidente nesta semana o que pensava das ações movidas por fiéis da Igreja Universal contra a Folha e a repórter Elvira Lobato. A resposta foi suficientemente vaga para desviar do ponto em questão (o recurso abusivo ao Judiciário, configurando um caso do que se entende por "litigância de má-fé") e, ao mesmo tempo, clara o bastante para que não pairassem dúvidas: sob o blablablá em defesa da liberdade de expressão, Lula tratava de prestar sua solidariedade à máquina de intimidar jornalistas patrocinada pelos líderes da Universal. Fez isso por cálculo, obviamente, já que princípios não são o seu forte.
Quem sabe seja um avanço para alguém que já chegou a tomar providências a fim de banir do país um repórter do "New York Times" que havia escrito sobre seus hábitos etílicos. Uma porcaria de reportagem de Larry Rohter, vale lembrar, como se fosse esse o problema.
Apesar das tentações autoritárias deste governo e das intenções escusas dos neobucaneiros da fé, parece obviamente exagerado dizer que a liberdade de expressão corre risco no país. Não acredito nisso. Desconfio, da mesma forma, quando uma corporação ou um grupo social, mesmo se coberto de razão ou de boas intenções, pretende falar em nome do bem coletivo ou do interesse geral. Antigamente isso tinha nome: ideologia.
O que hoje se vê não sob ameaça, mas em avançado estágio de degradação, é a capacidade de expressão da mídia. Muito em função da rede de áulicos sustentada pelo petismo, mas também pela delinqüência de vozes da oposição.


FERNANDO DE BARROS E SILVA é editor de Brasil .


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