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DEMÉTRIO MAGNOLI
O cânone stalinista
Há 50 anos, no 20 de março de
1956, tornavam-se públicos trechos do chamado "Discurso Secreto
de Nikita Kruschev", pronunciado semanas antes perante o 20º Congresso
do PCUS (Partido Comunista da
URSS). A peça histórica denunciava as
perseguições políticas de Josef Stalin e
o "culto à personalidade" do ditador
morto, deflagrando a "desestalinização". O próprio Kruschev tinha sido
um dos colaboradores principais de
Stalin -e um agente dos expurgos.
A "desestalinização" foi feita pelos
stalinistas soviéticos e difundida como
nova doutrina oficial pelos partidos
comunistas em todo o mundo. A narrativa que ela construiu tinha que preservar o sistema totalitário na URSS,
restringindo a crítica aos "excessos"
ou "desvios" de Stalin. À sua sombra,
os intelectuais comunistas elaboraram uma interpretação da história do
século 20 que se congelou como cânone, "naturalizando-se" em manuais
históricos e econômicos.
O primeiro pilar da narrativa é a tese
de que o "welfare state" se estabeleceu
como fruto da existência da URSS. As
classes dirigentes européias e americana teriam cedido aos trabalhadores
os direitos sociais, trabalhistas e previdenciários para reduzir a atração produzida pelo socialismo soviético. O argumento só se sustenta na base da liquidação da história dos movimentos
políticos e sindicais que conquistaram, em cada nação, o "welfare state".
O segundo pilar da narrativa é a tese
de que a ditadura de Stalin salvou a
humanidade do nazismo. Essa proposição aparece, sob forma "sofisticada",
na apresentação à nova edição da biografia clássica de Trótski escrita por
Isaac Deutscher. O texto, de Emir Sader, explica que a URSS conseguiu
"desenvolver-se suficientemente para
poder assestar o golpe decisivo na espinha dorsal do exército de Hitler e assim mudar a história do século 20", e
conclui que "o preço a pagar pelo desenvolvimento compulsivo imposto
por Stalin, no entanto, foi o da ruptura
com a democracia e os espaços de debate". Ou seja: o totalitarismo mais
sanguinário do século (a "ruptura
com os espaços de debate", na versão
ultra-stalinista do autor) propiciou
um "desenvolvimento compulsivo"
que redundou na vitória contra Hitler.
Na "era de Stalin", o Estado soviético
falsificava a história por meio da tesoura, da cola e dos líquidos fotográficos. Os intelectuais da "desestalinização", carentes do poder de um Estado
totalitário, usam o silogismo e a teleologia. O ódio à história é igual. Antes
da guerra, Stalin expurgou os melhores generais soviéticos e assinou um
tratado de paz e amizade com a Alemanha nazista, deixando seu país à
mercê das forças de Hitler. A URSS
"assestou o golpe decisivo na espinha
dorsal" da Alemanha não graças a Stalin, mas apesar dele, à custa de incomensuráveis perdas humanas e com o
auxílio indispensável de armas e suprimentos americanos.
O cânone stalinista sobreviveu ao
desmoronamento da URSS, pois,
mais que uma interpretação da história, ele é a bússola da razão política dos
herdeiros do "socialismo real". No seu
âmago, encontram-se o desprezo às liberdades e a noção de "eficiência histórica" das ditaduras. São componentes ideológicos vitais para os líderes,
partidos e intelectuais devotados a incensar o regime ditatorial chinês e
aplaudir os julgamentos sumários e
fuzilamentos cubanos.
Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras
nesta coluna.
@ - magnoli@ajato.com.br
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