São Paulo, quinta-feira, 23 de março de 2006 |
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Simplificações conceituais
FÁBIO KERCHE
Poder-se-ia argumentar, e é o que está por trás das simplificações, que a dependência agora não passa pelo poder local, mas é direta em relação ao beneficiado. Ora, só essa diferença seria suficiente para inviabilizar a utilização rigorosa do conceito definido pelo autor de "Coronelismo, Enxada e Voto" -sem contar que vivemos em um país urbano, que as eleições não são mais facilmente manipuladas e controladas etc. Ações geradas pelo poder público -ou a falta delas- podem ser um dos critérios para a avaliação de um governo ou para a opção por um candidato. É o que a literatura chama de voto de accountability. Ou seja, o eleitor escolhe baseado no que um determinado político e/ou partido fizeram em uma administração. Partindo da premissa de que o Bolsa-Família mudou a vida de milhares, por que não é legítimo que esses cidadãos avaliem positivamente o governo Lula por tal ação? Diferentemente do coronelismo, eles não são obrigados a votar no candidato do governo e não serão punidos se não o fizerem, e os critérios para a seleção dos beneficiados não passam por lealdades políticas. Em suma: o debate em torno dessa ação do governo é legítimo do ponto de vista democrático. Associá-la ao coronelismo, contudo, é simplesmente incorreto. Outro exemplo da falta de cuidado é a utilização do termo populista para rotular o presidente. Lula seria populista porque é popular, como se os dois termos fossem intercambiáveis. Populismo é "a exaltação do poder público; é o próprio Estado colocando-se através do líder, em contato direto com os indivíduos reunidos na massa", como ensina Francisco Weffort. Ou seja, o populismo é um fenômeno político em que uma liderança estabelece uma relação direta com o povo, sem a intermediação de instituições. Ora, o presidente Lula nunca se relacionou à margem das instituições, embora tenha grande identificação popular. É fundador de um partido político, governa com a parceria e as limitações necessárias do Congresso Nacional, respeita o Poder Judiciário, dialoga com os movimentos sociais organizados e nunca buscou atalhos aos rituais democráticos. O termo populista, nesse caso, além de desrespeitoso com a trajetória do presidente, é simplificador das complexas relações da democracia brasileira. As ciências sociais dão uma grande contribuição para o entendimento da política no Brasil. A popularização de explicações sociológicas é importante para que o conhecimento extrapole os limites das universidades. Entretanto, a crítica ao governo não precisa ser acompanhada de conceitos transformados em carimbos simplificadores da realidade social. Fábio Kerche, 34, doutor em ciência política pela USP e pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa (RJ), é assessor especial da Secretaria-Geral da Presidência da República. Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Oded Grajew: O mito (verdadeiro) de Robin Hood às avessas Próximo Texto: Painel do Leitor Índice |
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