São Paulo, quinta-feira, 23 de março de 2006

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Simplificações conceituais

FÁBIO KERCHE

A ligeireza com que parte da mídia e da oposição se utiliza de conceitos das ciências sociais na tentativa de desconstruir a figura pública de Luiz Inácio Lula da Silva é digna de nota.
Populismo e coronelismo, por exemplo, são utilizados não como conceitos que explicam fenômenos sociopolíticos com especificidades históricas, mas como slogans pejorativos desprovidos de seus significados. Mais revelador, entretanto, são as tentativas de modernização dos conceitos, numa crença de que a simples adjetivação -"coronelismo high-tech" ou "neocoronelismo"- basta para explicitar as diferenças marcantes do que ocorre no Brasil atualmente e do que aconteceu em outros períodos de nossa história recente.
Coronelismo foi um fenômeno, segundo Victor Nunes Leal, em que a decadência do poder local e privado dos coronéis se alimentava do ascendente poder público estatal, que ainda dependia dos votos controlados (literalmente) pelo coronel. Nessa mistura de poder público com poder privado e no sistema de reciprocidade é que surge o fenômeno do coronelismo. Os benefícios do poder público eram distribuídos aos aliados locais a partir de critérios meramente eleitorais.
Caso muito diverso, embora associado com o coronelismo por articulistas, é o crescimento do presidente Lula nas pesquisas de opinião, principalmente entre os mais pobres. Atribui-se ao Bolsa-Família os bons índices do governo e do presidente.
Mesmo que isso seja verdade, qual a relação entre o coronelismo e um programa amplo, com regras claras e universais, de transferência de renda? Onde está a dependência do poder local ao poder nacional, já que mesmo moradores de cidades ou Estados administrados por partidos da oposição também recebem o benefício? E como se encaixa nessa explicação o crescimento entre os mais instruídos e com maior renda?


O debate em torno do Bolsa-Família é legítimo numa democracia. Contudo, associá-lo ao coronelismo é incorreto

Poder-se-ia argumentar, e é o que está por trás das simplificações, que a dependência agora não passa pelo poder local, mas é direta em relação ao beneficiado. Ora, só essa diferença seria suficiente para inviabilizar a utilização rigorosa do conceito definido pelo autor de "Coronelismo, Enxada e Voto" -sem contar que vivemos em um país urbano, que as eleições não são mais facilmente manipuladas e controladas etc.
Ações geradas pelo poder público -ou a falta delas- podem ser um dos critérios para a avaliação de um governo ou para a opção por um candidato. É o que a literatura chama de voto de accountability. Ou seja, o eleitor escolhe baseado no que um determinado político e/ou partido fizeram em uma administração. Partindo da premissa de que o Bolsa-Família mudou a vida de milhares, por que não é legítimo que esses cidadãos avaliem positivamente o governo Lula por tal ação?
Diferentemente do coronelismo, eles não são obrigados a votar no candidato do governo e não serão punidos se não o fizerem, e os critérios para a seleção dos beneficiados não passam por lealdades políticas. Em suma: o debate em torno dessa ação do governo é legítimo do ponto de vista democrático. Associá-la ao coronelismo, contudo, é simplesmente incorreto.
Outro exemplo da falta de cuidado é a utilização do termo populista para rotular o presidente. Lula seria populista porque é popular, como se os dois termos fossem intercambiáveis.
Populismo é "a exaltação do poder público; é o próprio Estado colocando-se através do líder, em contato direto com os indivíduos reunidos na massa", como ensina Francisco Weffort. Ou seja, o populismo é um fenômeno político em que uma liderança estabelece uma relação direta com o povo, sem a intermediação de instituições.
Ora, o presidente Lula nunca se relacionou à margem das instituições, embora tenha grande identificação popular. É fundador de um partido político, governa com a parceria e as limitações necessárias do Congresso Nacional, respeita o Poder Judiciário, dialoga com os movimentos sociais organizados e nunca buscou atalhos aos rituais democráticos. O termo populista, nesse caso, além de desrespeitoso com a trajetória do presidente, é simplificador das complexas relações da democracia brasileira.
As ciências sociais dão uma grande contribuição para o entendimento da política no Brasil. A popularização de explicações sociológicas é importante para que o conhecimento extrapole os limites das universidades. Entretanto, a crítica ao governo não precisa ser acompanhada de conceitos transformados em carimbos simplificadores da realidade social.

Fábio Kerche, 34, doutor em ciência política pela USP e pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa (RJ), é assessor especial da Secretaria-Geral da Presidência da República.

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