São Paulo, quinta-feira, 23 de maio de 2002

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OTAVIO FRIAS FILHO

Segredo da fé

No excelente artigo publicado este domingo no caderno Mais!, o sociólogo da religião Antônio Flávio Pierucci analisa os dados do Censo de 2000 e registra que o catolicismo brasileiro, embora ainda amplamente majoritário, continua perdendo "fatias de mercado" para outros cultos. A novidade é que essa tendência se acelerou nos anos 90.
O número dos que se declaravam católicos involuiu de 95% (em 1940) para 89% (1980) e 84% (1991) até chegar aos atuais 74%. O segundo grupo mais expressivo, formado pelas diversas confissões evangélicas, cresceu de 9% para 15% da população nos últimos dez anos. Mesmo os sem-religião, 5% em 1991, agora passam de 7% do conjunto pesquisado.
O professor Pierucci conclui que a violenta despolitização levada a termo no atual papado de nada serviu para deter essa queda, se é que não a acentuou. Não é confortável discutir com um respeitado especialista, ainda mais no espaço de um comentário breve. Mas será que tal conclusão, simpaticamente progressista, não merece alguma controvérsia?
Um entusiasta de João Paulo 2º sempre poderia argumentar que a perda de influência teria sido ainda mais acentuada se o papa não houvesse desmantelado a igreja "progressista" e proscrito a Teologia da Libertação. Mas deixemos essa especulação de lado para tentar focalizar o que caracteriza as seitas que mais cresceram no mesmo período.
Uma característica relevante é que são sistemas de crenças que prometem uma resposta imediata e material. A quimera de uma remota vida eterna, capaz de compensar as vicissitudes deste "vale de lágrimas", sensibiliza pouco. O importante é que a religião seja uma alavanca para obter vantagens aqui e agora: emprego, vida decente, vitória sobre as drogas.
Outro aspecto que chama a atenção é que o apelo passa a ser individual, em vez de coletivo, tal como era na abordagem "sociológica" que marcou a atuação do catolicismo progressista. O crente é chamado a intervir em sua própria vida e na de seus familiares e amigos em lugar de compreender e atuar contra as estruturas da injustiça.
O terceiro aspecto, que tanto tem iludido a hierarquia católica, diz respeito ao frenesi místico, irracional, que marca os novos e bem-sucedidos cultos de massa. Menos presente na Teologia da Libertação do que no catolicismo tradicional, o show místico é apenas aparência a ocultar o essencial: as novas religiões são, no fundo, profundamente materialistas.
Ou seja, a política de João Paulo 2º, odiosa como é, apenas mimetiza as tendências que predominam não somente no ambiente religioso mas na própria mentalidade da nossa época: individualista, materialista, formalmente irracional, radicalmente conservadora em sua descrença na possibilidade de reformar as estruturas da economia e da sociedade.
Em outro excelente artigo no mesmo suplemento, o ensaísta Sergio Paulo Rouanet resenha as tentativas da filosofia mais recente de recuperar a dimensão mística da experiência humana. Difícil não vê-las, também, como sintoma de que nossa razão iluminista nada pode contra a perenidade do capitalismo e seu cortejo de esplendores e misérias.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.



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