São Paulo, quarta-feira, 23 de maio de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Passos perigosos

DENIS LERRER ROSENFIELD

O Estado exibe tendência legiferante incontida, como se novas leis resolvessem os problemas que ele se mostra incapaz de equacionar

HÁ PEQUENOS passos que, pouco perceptíveis, indicam rumos. Nem sempre as políticas se fazem com grande estardalhaço, mas se acobertam sob símbolos digeríveis para a opinião pública.
A saúde sempre aparece, para todos, como um bem a ser preservado, como se ela não implicasse o seu significado, a sua livre escolha e as condições de sua realização. As noções de bem são questões disputadas. Quantas vezes constatamos que o que é o bem para uma pessoa não o é para outra? Quantas vezes constatamos que a livre escolha de algo é mais importante do que o objeto sobre o qual recai a ação? Quantas vezes constatamos que uma boa intenção não tem condições factíveis de realização?
O presidente Lula, num arroubo, seguindo seu ministro da Saúde, quebra a patente de um medicamento usado para o combate à Aids. Aparentemente, a causa é boa, pois favorece quem faz uso desse medicamento.
O argumento utilizado toca em um imaginário esquerdista brasileiro, segundo o qual os "ricos" estariam "explorando" o Brasil. Entre a riqueza e a saúde, a escolha estaria feita: o país teria optado pela saúde dos cidadãos contra os grandes exploradores.
A cena parece muito bem montada, e os atores teriam tido um desempenho correto. Caberia aos espectadores-cidadãos apenas aplaudir. Acontece que a empresa farmacêutica em questão não enriqueceu por "explorar" o Brasil, mas porque investiu em pesquisa, arriscou o seu capital, descobriu um novo medicamento e vendeu o produto do seu trabalho e de seu empreendedorismo.
A pesquisa de um novo medicamento custa entre 1 bilhão e 4 bilhões de dólares. Se o governo brasileiro estivesse verdadeiramente interessado na saúde dos seus cidadãos, possibilitaria que um investimento nacional desse montante se fizesse no país.
Imaginem o seguinte caso de figura. Se todos os países quebrassem a patente de medicamentos, a pesquisa nessa área ficaria inviabilizada. Ou seja, novos medicamentos não seriam mais produzidos. E a saúde, tão apregoada, onde ficaria?
A demagogia é tão clara que a economia feita pelo governo brasileiro é uma ínfima parte do que o mesmo governo gasta em publicidade.
A Anvisa decidiu, por sua vez, regulamentar os lugares públicos destinados aos fumantes. É certamente necessária a distinção, em lugares públicos, entre fumantes e não fumantes, de tal maneira que a livre escolha de cada um seja preservada.
O que causa espanto no processo em curso é o confinamento ao qual os fumantes são destinados. É como se fosse uma punição. Menores de 18 anos, em nome do politicamente correto brasileiro, não são punidos pelos crimes bárbaros que cometem, mas os fumantes, sim! Estariam reclusos a um local onde não poderiam beber nem comer. Qual é a relação entre fumar e não poder beber ou comer, senão criar desconforto, insatisfação?
A pergunta justa seria: cabe ao Estado determinar como um indivíduo deve fumar, acompanhado ou não de bebidas e comidas? O problema, aparentemente anódino, por implicar somente a categoria dos fumantes, remete a uma questão maior, a da liberdade de escolha. Se a liberdade de escolha começa a ser suprimida, as tendências autoritárias começam a crescer. Muitas vezes, crescem em nome da onda do politicamente correto.
O controle dos cidadãos, no entanto, não pára por aí. Novas regulamentações já são anunciadas no que diz respeito à publicidade, à compra de bebidas alcoólicas e às suas autorizações de venda segundo o teor.
O Estado exibe tendência legiferante incontida, como se novas regras e leis fossem resolver todos os problemas que ele se mostra incapaz de equacionar. Decide, por seu próprio arbítrio, interferir na vida privada dos cidadãos, como se estes devessem pagar pelo controle que ele, Estado, exerce sobre eles. De onde provém toda essa sapiência dos governantes?
A situação não deixa de ser burlesca. Exige-se dos cidadãos que paguem cada vez mais impostos e, em retorno, recebem, como compensação, uma redução do seu espaço de livre escolha. Os contribuintes pagariam para ficar cada vez mais acorrentados.
Passos são, assim, dados numa diminuição da esfera da vida privada e da capacidade de livre escolha, na relativização da propriedade privada. Em contrapartida, cresce o campo de atuação do Estado, a sua voracidade fiscal e o enfraquecimento da liberdade. Será que somos todos menores incapazes?


DENIS LERRER ROSENFIELD, 56, doutor pela Universidade de Paris 1, é professor titular de filosofia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e editor da revista "Filosofia Política". É autor de "Política e Liberdade em Hegel" (Ática, 1995), entre outros livros.

denisrosenfield@terra.com.br

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