São Paulo, domingo, 23 de junho de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

A vergonha da família

RIO DE JANEIRO - Na família de outros tempos, havia sempre uma ovelha negra que era brandida como uma ameaça para quem se comportasse mal ou tivesse tendência a isso. Qualquer falta, grave ou insignificante, provocava a advertência, que funcionava como definitiva condenação ao inferno.
Na minha família, a ovelha negra mais em evidência era uma prima afastada, que, aos 15 anos, fugiu de casa atrás de um circo, apaixonou-se por um engolidor de fogo, sumiu com ele numa cidade da Bolívia. Tempos depois, apareceu como cartomante na rua Buenos Aires, foi presa por exercer artes divinatórias, deu um trabalhão soltá-la, fugiu com um comissário que havia dado um desfalque não sei onde, finalmente saiu dos nossos horizontes até que ficamos sabendo que se regenerara e servia como irmã leiga num convento de Carmelitas Descalças, em Bogotá.
Chamava-se Lulude. Acho que o nome verdadeiro era Maria de Lourdes, mas o apelido era invocado sempre que alguém fazia qualquer coisa errada: ""Vamos ter outra Lulude na família!".
Penso nela com frequência, sobretudo nesses últimos tempos. Vejo as capas das revistas semanais e, se trocasse o nome ""Argentina" por ""Lulude", acho que daria no mesmo.
É possível que a aterradora ameaça do exemplo de Lulude tenha impedido algum membro do nosso clã de fazer coisas iguais ou piores. Era um limite que não se deveria ultrapassar.
Assim também ocorre com a Argentina, que é nossa prima não tão afastada assim, pois fazemos limites com ela, no território e na história.
A diferença entre Lulude e Argentina é que a primeira nunca foi modelo de nada e para nada. Sempre trilhou aquilo que chamavam de ""os caminhos do mal".
A Argentina, não faz muito, enchia a boca dos neoliberais do nosso governo, apontada como exemplo que devíamos seguir. Hoje, é a vergonha da família que devemos evitar.



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