São Paulo, terça-feira, 23 de julho de 2002

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Poder sem perdição

Em vez de tratar da política ou da economia, trato hoje dos corações. À medida que se aproxima a eleição presidencial, aumenta entre os aliados e os colaboradores de cada um dos candidatos presidenciais o fervor com que avaliam as oportunidades que lhes serão abertas ou fechadas pelo resultado eleitoral. Os que apóiam os candidatos com melhores chances são abordados efusivamente, como se tivessem comprado bilhete ganhador na loteria. Nada mais insensato. Em primeiro lugar, porque a campanha eleitoral está apenas começando. Em segundo lugar, porque em país como o nosso a perspectiva do poder só pode ser encarada com temor reverencial. Temor da tarefa que cairá sobre os ombros de quem vier a compartilhar a responsabilidade do governo. Nesse temor começa o reconhecimento de verdades paradoxais.
É vital manter o foco na proposta em cujo nome se ganhou a eleição. Não confundir, porém, compromissos programáticos com dogmas intelectuais. Mesmo o mais inteligente e culto de nós é um obtuso e um ignorante diante da vastidão dos problemas que o país enfrenta e dos recursos secretos - de engenho e de energia- com que pode, pouco a pouco, resolvê-los.
É indispensável enfrentar os interesses organizados que reprimem nossas oportunidades de desenvolvimento e de justiça. O único meio eficaz para enfrentá-los é a mobilização das maiorias desorganizadas. Jamais, porém, o desfecho do enfrentamento será legítimo e fecundo se não passar também pela negociação paciente com os interesses ameaçados ou se desrespeitar as prerrogativas das instituições que se opuserem às reformas pretendidas.
É preciso cada dia decidir, pondo limites a divergências de equipe e escolhendo o momento em que a discussão tem de ceder lugar à opção, produtora de novas encruzilhadas. Decidir, entretanto, sabendo que nunca sabemos o bastante para decidir sem risco de erro.
É necessário participar dos embates inerentes ao conflito de ambições e de entendimentos. Mas sem que cada participante perca o sentido da relatividade de seu próprio ponto de vista e da dificuldade de separar o que cada um quer para o Brasil e o que quer para si.
Para enfrentar tais contradições não há fórmula. Há, porém, método. O método é aprender. Aprender de correligionários e de adversários. Sobretudo aprender do país. O Brasil, essa fábrica de vitalidade, erra no varejo, mas acaba acertando no atacado. Tratemos de aprender do país como superar, na conduta de cada um de nós, esses dilemas aparentemente insuperáveis.
Sinal de êxito nesse esforço será mudança na maneira de ser. Todos os que se aproximarem do poder devem poder dizer que se transformaram. Imagino-os descrevendo essa transfiguração da seguinte maneira. Na oposição, quando vagávamos no deserto político, viram-nos intransigentes e guerreiros, cantando vitória em meio à derrota, compensando nossa fraqueza com visões heróicas de resistência e de engrandecimento. No poder, porém, nossos concidadãos, atônitos, nos encontrarão mudados. Ver-nos-ão humildes e magnânimos, relutantes em falar, atentos em ouvir, penetrados pelo sentimento da nossa própria falta de importância, sabedores de que qualquer indivíduo está sempre despreparado para suas responsabilidades maiores e portanto conscientes do lado cômico do poder. E misteriosamente alegres por conta da entrega da vontade às tarefas e à vida. Quem executar esse plano de autotransformação não estará perdido, mesmo que seja poderoso.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.


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