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JOSÉ SARNEY
Mercosul,
uma vez mais
A conversão do Mercosul, pensado como mercado comum, em
uma área de livre comércio cujo objetivo principal passou a ser a tarifa zero, transformação acordada pelos presidentes Menem e Collor, construiu
uma mentalidade, na Argentina e
aqui, de que a união do Cone Sul é
apenas um objetivo de comércio.
Foi por água abaixo a visão da integração política, cultural, física e de
uma comunidade de nações, conforme diz a nossa Constituição no artigo
4º: "A República Federativa do Brasil
buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da
América Latina, visando à formação
de uma comunidade de nações". O
texto é bom, com olhos no futuro, claro e construído na mesma linha histórica da nossa missão no continente. O
que ali está dito é o que fez a União Européia.
Pois bem, perdeu-se essa visão, desapareceu esse objetivo de tal modo
que agora se briga por geladeira, fogão
e máquina de lavar roupas como se lutássemos pela soberania nacional. No
nosso balanço comercial com a Argentina, isso não vale nada, são US$ 60
milhões, quando nossas exportações
são de US$ 3,28 bilhões.
Os industriais, lá e cá, resolveram investir-se na lei de Gerson: levar vantagem em tudo. Outro dia, foi o calçado,
e os argentinos brigaram pela invasão
do calçado brasileiro. Esqueceram-se
de que o couro dos nossos calçados é
comprado na Argentina. Agora, a
nossa linha branca faz atos públicos e
gritaria desnecessária por causa de
uma posição argentina de querer defender o interesse de setores de sua
economia que se sentem ameaçados
de extinção. O lugar para discutir isso
é a mesa de entendimentos e a capacidade de negociar, nunca esse histerismo que se quis implantar com frases
como "o Mercosul acabou". Ora, uma
relação dessa profundidade histórica,
se estiver vulnerável por um embarque de geladeira ou de televisão, mostra que não está entregue a estadistas.
Felizmente, essa visão não passa de
mero interesse de setores comerciais,
que, embora justos, não podem comandar um projeto nacional dessa
magnitude.
Os presidentes Lula e Kirchner foram enfáticos, ao assumir o governo,
sobre o Mercosul. Ambos sabem que é
esse o caminho e que têm de consertar
os erros que foram cometidos, e não
destruir o que foi construído. Tudo isso nasceu quando se abandonou as linhas do Tratado de Buenos Aires, de
1988, que pregava integração por setores, passos firmes para evitar retrocessos e para não cairmos nesse jogo de
interesses menores que nada têm de
nacionais.
O Brasil tem de ter a consciência de
que o seu tamanho e grandeza impõem responsabilidades e custos, que
lhe cabe zelar em nível continental.
Vamos ter a coragem de dar passos
em frente, criando uma comissão para
resolver controvérsias e marchar para
o Parlamento da região. Se não puder
esse organismo ter grande competência para ditar normas, que comece por
um fórum de debate, de diálogo, uma
caixa de ressonância de nossos interesses e um vertedouro para dissipar
energias e conflitos.
Temos de compreender a situação
interna da Argentina, os esforços que
está fazendo para conjurar uma crise
que quase lhe atinge a alma.
E estarmos preparados para sempre
enfrentar dificuldades, porque, como
diz o provérbio espanhol: "No hay día
sin su porfía".
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna
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