São Paulo, sexta-feira, 23 de julho de 2004

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JOSÉ SARNEY

Mercosul, uma vez mais

A conversão do Mercosul, pensado como mercado comum, em uma área de livre comércio cujo objetivo principal passou a ser a tarifa zero, transformação acordada pelos presidentes Menem e Collor, construiu uma mentalidade, na Argentina e aqui, de que a união do Cone Sul é apenas um objetivo de comércio.
Foi por água abaixo a visão da integração política, cultural, física e de uma comunidade de nações, conforme diz a nossa Constituição no artigo 4º: "A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade de nações". O texto é bom, com olhos no futuro, claro e construído na mesma linha histórica da nossa missão no continente. O que ali está dito é o que fez a União Européia.
Pois bem, perdeu-se essa visão, desapareceu esse objetivo de tal modo que agora se briga por geladeira, fogão e máquina de lavar roupas como se lutássemos pela soberania nacional. No nosso balanço comercial com a Argentina, isso não vale nada, são US$ 60 milhões, quando nossas exportações são de US$ 3,28 bilhões.
Os industriais, lá e cá, resolveram investir-se na lei de Gerson: levar vantagem em tudo. Outro dia, foi o calçado, e os argentinos brigaram pela invasão do calçado brasileiro. Esqueceram-se de que o couro dos nossos calçados é comprado na Argentina. Agora, a nossa linha branca faz atos públicos e gritaria desnecessária por causa de uma posição argentina de querer defender o interesse de setores de sua economia que se sentem ameaçados de extinção. O lugar para discutir isso é a mesa de entendimentos e a capacidade de negociar, nunca esse histerismo que se quis implantar com frases como "o Mercosul acabou". Ora, uma relação dessa profundidade histórica, se estiver vulnerável por um embarque de geladeira ou de televisão, mostra que não está entregue a estadistas. Felizmente, essa visão não passa de mero interesse de setores comerciais, que, embora justos, não podem comandar um projeto nacional dessa magnitude.
Os presidentes Lula e Kirchner foram enfáticos, ao assumir o governo, sobre o Mercosul. Ambos sabem que é esse o caminho e que têm de consertar os erros que foram cometidos, e não destruir o que foi construído. Tudo isso nasceu quando se abandonou as linhas do Tratado de Buenos Aires, de 1988, que pregava integração por setores, passos firmes para evitar retrocessos e para não cairmos nesse jogo de interesses menores que nada têm de nacionais.
O Brasil tem de ter a consciência de que o seu tamanho e grandeza impõem responsabilidades e custos, que lhe cabe zelar em nível continental.
Vamos ter a coragem de dar passos em frente, criando uma comissão para resolver controvérsias e marchar para o Parlamento da região. Se não puder esse organismo ter grande competência para ditar normas, que comece por um fórum de debate, de diálogo, uma caixa de ressonância de nossos interesses e um vertedouro para dissipar energias e conflitos.
Temos de compreender a situação interna da Argentina, os esforços que está fazendo para conjurar uma crise que quase lhe atinge a alma.
E estarmos preparados para sempre enfrentar dificuldades, porque, como diz o provérbio espanhol: "No hay día sin su porfía".


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna


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