São Paulo, sexta-feira, 23 de agosto de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Qual Lula?

DENIS ROSENFIELD

Os deslocamentos recentes do PT para o centro do espectro partidário suscitam questões sobre o sentido dessa mudança de rumo.
Pode-se, evidentemente, dizer que eles correspondem a uma necessidade eleitoral, pois, se assim não fosse, as chances de vitória de Lula seriam muito menores. Cabe, no entanto, a pergunta sobre a significação programática dessa aproximação com o PL e com Orestes Quércia -aproximação essa acompanhada de um discurso abstrato que nada diz, contentando-se com generalidades.
Consideremos a hipótese, plausível, de que estamos presenciando um movimento de "social-democratização" forçada do PT que reluta em dizer o seu nome. Nesta perspectiva, o PT se colocaria como um partido de centro-esquerda, aceitando as regras da democracia representativa e procurando uma reforma do capitalismo brasileiro dentro dos marcos republicanos. As tendências reformistas do PT estariam, finalmente, no controle do partido, dando as cartas do jogo político.
A social-democratização do PT seria, contudo, forçada, pois o partido não teria tido tempo para uma revisão de seus fundamentos doutrinários, contentando-se com as contradições decorrentes de documentos que se sucedem ao sabor das circunstâncias eleitorais.
Se atentarmos para processos semelhantes ocorridos tanto no Partido Socialista Espanhol, no trabalhismo inglês como no PS francês, observaremos, nesses países, que a revisão programática veio acompanhada de transformações partidárias e ideológicas profundas, com mudanças de liderança e, inclusive, com cisões partidárias que se traduziram na saída de quadros até então importantes desses partidos.
Nada disso está acontecendo com o PT, que, sem explicitar o que está fazendo, opera com as mesmas lideranças e quadros, contando com a aquiescência das alas mais à esquerda do partido, que apenas manifestam superficialmente o seu descontentamento. A demagogia resultaria do não-reconhecimento dessa social-democratização em curso.
A vaguidade dos propósitos petistas, a generalidade das respostas às perguntas de jornalistas e a postura reiterada de nada esclarecer correspondem a uma finalidade eleitoral de cunho demagógico. Os discursos petistas têm tido como alvo preponderante acalmar os mercados, sem nenhuma preocupação com a coerência doutrinária. Aposta-se, aqui, na ausência de memória, como no apoio ao plebiscito para o não-pagamento da dívida externa, a expulsão da Ford do Rio Grande do Sul, o MST -cujas características se tornaram de tipo revolucionário-, sem falar no discurso antiamericano, anti-Alca e anti-FMI. A recuperação da memória seria, por sua vez, um claro signo de uma mudança de postura partidária.


Os discursos petistas têm como alvo preponderante acalmar os mercados, sem preocupação com a coerência doutrinária


Paralelamente a esses processos de social-democratização forçada e de demagogia, um outro processo está em curso, o da realização do projeto revolucionário das alas mais à esquerda do partido. O Rio Grande do Sul é o lugar de sua experiência e o seu governo tem recebido elogios reiterados de Lula.
Nesse Estado, presenciamos aquilo que Hannah Arendt qualificou de movimento totalitário, a saber, aquele processo que conduz ao desmantelamento do Estado, à abolição da democracia, visando à instalação de um regime que se pretende revolucionário.
Os traços de um movimento desse tipo se encontram em: a) tentativas de criminalização do direito de opinião via processos contra jornalistas e intelectuais; b) ideologização e partidarização da Polícia Militar; c) apoio ao MST na invasão de fazendas produtivas e de alta tecnologia, sem nenhum respeito ao direito de propriedade; d) relutância extrema no cumprimento de ordens judiciais; e) ideologização da educação pública; f) afinidade com as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia); g) instrumentalização do Orçamento Participativo com finalidades partidárias; h) vinculação com o jogo do bicho, recuperando a velha máxima de que os fins justificam os meios.
Uma derrota do PT no Rio Grande do Sul seria, nesse sentido, um grande serviço à democracia brasileira, pois, ao enfraquecer as tendências revolucionárias do partido, contribuiria para que esse assumisse definitivamente a sua face reformista.
Uma eventual vitória de Lula fará, sem dúvida, com que essas contradições apareçam; e elas serão tanto mais agudas quanto maior for o tempo do seu reconhecimento. A sucessão de máscaras nos obriga a pensar o sentido dessa encenação. "Qual Lula?" -eis, certamente, a questão.


Denis Lerrer Rosenfield, 50, doutor pela Universidade de Paris 1, é professor titular de filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, editor da revista "Filosofia Política" e pesquisador do CNPq. É autor, entre outras obras, de "Política e Liberdade em Hegel".

E-mail: denisrosenfield@terra.com.br



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