São Paulo, sexta-feira, 23 de agosto de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Continuidade ou ruptura?

EMIR SADER

Foi-se o tempo em que os presidentes latino-americanos se elegiam e se reelegiam conforme a cartilha do ajuste fiscal. Foi assim com Menem, com Fujimori, com FHC.
Hoje, na ressaca da farra especulativa gerada por essas políticas, que promoveram a financeirização das economias do continente, fragilizando-as mais do que nunca, os tempos são outros: contam-se em meses o prestígio dos presidentes recém-eleitos. Foi assim com De la Rúa e com seu sucessor, Duhalde; foi assim com Vicente Fox, com Ricardo Lagos, com Jorge Battle e Alejandro Toledo.
Que fique claro que eles fracassaram, dilapidaram seu capital eleitoral não porque tivessem ousado romper com as políticas do FMI, mas porque insistiram em as manter, prometendo o impossível: compatibilizá-las com a retomada do desenvolvimento econômico, com políticas sociais, com criação de empregos -e deram com os burros n'água.
Essas políticas são essencialmente recessivas, chocam-se com a expansão econômica, com a distribuição de renda, com a criação de empregos, com o aumento salarial, com a extensão do mercado de consumo popular, com a afirmação de direitos para todos, com a democratização do Estado e a socialização da política e do poder.
Quem não quiser falar de ruptura com a política econômica de FHC/Malan deve se calar sobre desenvolvimento, políticas sociais, geração de empregos e democratização do Estado. Portanto esses fracassos se repetirão se os eleitos, nas palavras ou nos fatos, mantiverem a continuidade, em vez de romper com essas políticas.
Não bastasse as artimanhas antidemocráticas de um sistema político oligárquico, os responsáveis pela fragilização de nossas economias tentam consolidar as armadilhas que suas políticas montaram para impedir que o povo decida soberanamente que respostas dar à crise gerada por essas políticas.
Agem de dois modos: com a boca e com o bolso. Diariamente dão declarações tentando condicionar a resposta da oposição à crise, buscando limitá-la aos marcos de suas próprias políticas de financeirização da economia, ao mesmo tempo em que os grupos econômicos privilegiados por essas políticas fogem e ameaçam gerar uma debandada, caso a oposição triunfe.


A continuidade é prolongar o dessangramento econômico, social e moral do país


São os agentes da ditadura do capital especulativo, que desejam desqualificar o espaço de alternativas democráticas que o povo conquistou contra a ditadura militar, estreitando as margens de opção ao "cumprimento dos compromissos" assumidos por eles, que hipotecam o destino do Brasil ao capital financeiro, tornado hegemônico como resultado das políticas de ajuste fiscal.
À sombra dos fracassos de De la Rúa, Toledo, Battle, Fox, Lagos, signatários, vários deles, do Consenso de Buenos Aires, também assinado por Ciro Gomes, quando a "terceira via" ainda estava de pé, que futuro se pode prever para o Brasil?
Dois riscos nos ameaçam: o da continuidade e o do "gattopardismo". A continuidade é prolongar o dessangramento econômico, social e moral do país, seja pelas mãos de quem é candidato do governo ou por quem pretende ser o novo anti-Lula.
O "gattopardismo" caracterizou a história brasileira, com mudanças na forma, mas preservando a dominação das elites, sob qual a "independência" adiou a República e o fim da escravidão, a República manteve o sistema político oligárquico, a "Revolução de 30" foi feita "antes que o povo a fizesse", a redemocratização depois da ditadura militar manteve toda a estrutura socioeconômica do poder, o combate à inflação do Plano Real preservou e promoveu o capital financeiro.
Desta vez, pretende-se castrar a vontade de mudança do povo brasileiro, condicionado-a aos marcos das políticas que fracassaram ao longo da última década, em relação às quais o desejo majoritário da cidadania é de mudança, e não de continuidade.
A inércia do poder vigente, cristalizada no capital financeiro e nas atuais autoridades econômicas do governo, é a maior ameaça de jogar o Brasil numa crise advinda da frustração da vontade e da necessidade imperiosa de mudanças profundas no Brasil e pode levar a que o país repita, de forma muito mais aguda e trágica, as crises dos vizinhos.
Ou, apontando para novos horizontes, que sirva de referência para que eles também se lancem pelo caminho da mudança: o da democracia econômica, social, política e cultural -aquela que o Brasil nunca viveu.


Emir Sader, 59, é professor de sociologia da USP (Universidade de São Paulo) e da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e autor de "Século 20: uma Biografia Não-Autorizada" (Perseu Abramo), entre outras obras.



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