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TENDÊNCIAS/DEBATES
O STF deve manter a demarcação da reserva indígena Raposa/Serra do Sol em área contínua?
SIM
Direitos constitucionais dos índios
DALMO DE ABREU DALLARI
PARA OS índios brasileiros, a terra não é um valor econômico,
mas um bem essencial para sua
sobrevivência. Isso é muito diferente
da concepção dos que invadem áreas
indígenas visando aumentar o patrimônio sem pagar pelas terras de que
se apossam ilegalmente, sem consideração de ordem ética e sem respeito pela vida e pela dignidade dos seres
humanos que são os índios.
Para indignação dos brasileiros que
respeitam a Constituição e os princípios e as normas nela consagrados,
autoridades públicas que deveriam
ser um padrão de dignidade e honestidade acobertam e auxiliam os grileiros das terras indígenas, simulando
preocupação com o Direito, a Justiça
e a soberania nacional, mas, na realidade, colaborando para a espoliação
do patrimônio público e a consumação de inconstitucionalidades.
Foi com a colaboração de autoridades públicas que invasores de áreas
indígenas criaram por lei estadual falsos municípios, sem existência legal,
pois não foram cumpridas as exigências expressas no artigo 18 da Constituição para a criação de municípios.
Uma vez mais o Supremo Tribunal
Federal deverá tomar uma decisão
em ação judicial movida com o propósito de anular a demarcação de área
indígena feita com absoluta regularidade, apoiada em laudo antropológico e rigorosamente dentro da lei.
Trata-se do caso da área indígena
Raposa/Serra do Sol, vizinha ao Estado de Roraima, há séculos ocupada
por etnias indígenas. A decisão que
for tomada poderá ter o efeito gravíssimo de anular todas as demarcações
de áreas indígenas feitas até hoje com
rigor técnico e estrita obediência a regras constitucionais e legais.
Se isso ocorrer, haverá muitos conflitos e as conseqüências poderão ser
gravíssimas, dando margem à acusação, já feita anteriormente, de que, no
Brasil, se pratica o genocídio indireto.
Se o STF cumprir sua função de guarda da Constituição, isso será evitado.
Antes de tudo, dispõe a Constituição, no artigo 20, inciso XI, que são
bens da União "as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios". No artigo 231, são fixadas duas normas fundamentais relativamente a essas terras que são de propriedade da União.
O parágrafo primeiro do artigo 231
deixa claro o sentido dessa ocupação:
"São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas
em caráter permanente, as utilizadas
para suas atividades produtivas, as
imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu
bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo
seus usos, costumes e tradições". O
parágrafo segundo dispõe: "As terras
tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e
dos lagos nelas existentes".
Como fica mais do que óbvio, a ocupação indígena não se limita aos agrupamentos das habitações em que dormem, mas abrange toda a área onde
os índios obtêm o indispensável para
sua sobrevivência digna, colhendo os
frutos da natureza, plantando, criando gado ou pescando, dependendo
das condições de cada região.
Além disso, é na área circundante
às habitações que o índio identifica,
colhe e utiliza plantas medicinais,
bem como o material necessário à
edificação das casas e à fabricação de
roupas, utensílios, enfeites e objetos
destinados aos seus rituais, como
também suas armas. Ainda mais, é
nesse espaço circundante que eles enterram os seus mortos, pelos quais
têm grande respeito e veneração.
Por tudo isso, a demarcação das terras indígenas é, necessariamente, de
áreas contínuas, em rigorosa obediência à norma constitucional que
define como indígenas todas as terras
tradicionalmente ocupadas pelos índios, não havendo um só caso de ocupação de "ilhas", deixando intervalos
vagos, sem ocupação, entre um e outro espaço ocupado por aldeamentos.
Assim sendo, é absurda e inconstitucional a pretensão de anular a demarcação de áreas contínuas, abrindo
espaço para que aventureiros sem escrúpulos, agredindo a Constituição,
criem barreiras entre as aldeias da
mesma etnia.
DALMO DE ABREU DALLARI, 76, advogado, é professor
emérito da Faculdade de Direito da USP (Universidade de
São Paulo). Foi secretário de Negócios Jurídicos do município de São Paulo (gestão Luiza Erundina).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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