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TENDÊNCIAS/DEBATES
O STF deve manter a demarcação da reserva indígena Raposa/Serra do Sol em área contínua?
NÃO
A Constituição violada
DENIS LERRER ROSENFIELD
A CONSTITUIÇÃO não pode ficar
à mercê de um Poder Executivo que, exorbitando de suas
funções, se apropria de funções legislativas e mesmo jurídicas. O governo
não legisla só por meio de medidas
provisórias, mas o faz também por
atos administrativos que incidem sobre a vida dos cidadãos e, mesmo, sobre princípios constitucionais.
Atos administrativos, tais como decretos presidenciais, ministeriais,
portarias, resoluções e instruções
normativas, só seguem aparentemente a Constituição, introduzindo uma
série de atos que alteram seu espírito,
se não a sua própria letra. O governo
age por meio de uma legislação infralegal, de caráter administrativo, que
altera o ordenamento constitucional.
A Funai, órgão do Ministério da
Justiça, é uma das instâncias do Estado que estão exorbitando de suas funções, atribuindo-se papel legislativo,
como se fossem espécie de instância
máxima à qual os Poderes constituídos deveriam se curvar.
Em seus processos administrativos
de identificação, delimitação e demarcação que desembocarão em decretos presidenciais de homologação
de terras indígenas, a Funai se dá ao
luxo de não observar o direito ao contraditório nas etapas iniciais, numa
espécie de jogo de cartas marcadas.
As partes interessadas, salvo as escolhidas, não tiveram o direito de se
manifestar. Índios que não concordavam com a demarcação não foram
consultados. Produtores rurais tampouco o foram, como se o seu trabalho nada valesse. Entre os consultados, ressalte-se o Cimi (Conselho Indigenista Missionário) e entidades a
ele vinculadas.
Considerando que, por razões históricas, a questão indígena goza de
simpatia na sociedade, a Funai age como se os Estados fossem entes que
poderiam ser tutelados. O mesmo se
pode dizer de municípios que poderiam sumir do mapa, ao completo arrepio da Constituição, por meros atos
administrativos. Ademais, para a Funai, o direito de propriedade não teria
nenhuma valia, embora seja constitucionalmente garantido.
A demarcação da reserva Raposa/
Serra do Sol sofre de todos esses vícios, decorrentes da ação de um órgão
estatal que, tomado pelo pecado da
soberba, se coloca como se fosse um
verdadeiro poder constituinte.
Vale a pena ler os objetivos do Cimi:
"Para o Cimi, o objetivo geral que se
desdobra e se operacionaliza em múltiplos objetivos específicos é a vida
dos povos indígenas, prefigurado na
proposta evangélica do Reino de
Deus. Essa vida, sistemicamente
ameaçada, põe o Cimi no centro de
conflitos que moldaram a sua missão
profética. Esse papel profético leva o
Cimi não só a denunciar abusos do
sistema capitalista em sua configuração neoliberal, mas o obriga a propor
rupturas com esse sistema. O horizonte do Reino de Deus deslegitima
parcerias com o sistema capitalista e
estimula firmar alianças com os construtores de uma nova sociedade".
Ou seja, o discurso de ruptura com
o capitalismo é norteador de suas
ações, numa perspectiva que coloca o
desrespeito ao direito de propriedade, ao Estado de Direito e ao pacto federativo como algo religiosamente
justificado. O ordenamento constitucional seria mero detalhe a ser desconsiderado, já que o horizonte do
"Reino de Deus" o deslegitima.
O próprio laudo antropológico ora
defende a demarcação descontínua,
ora a contínua, além de variar, no
transcurso do processo, em relação à
própria área a ser demarcada.
Em caso de todo o processo de demarcação da reserva indígena Raposa/Serra do Sol não ser considerado
nulo pelos vícios administrativos dele
decorrentes, a demarcação por ilhas
seria ainda a melhor alternativa. Ela
asseguraria a existência de municípios, uma franja altamente produtiva
do Estado de Roraima, o direito de
propriedade e a livre circulação de índios e não índios, numa região, aliás,
de convívio até então harmônico entre diferentes raças e etnias.
A Constituição brasileira não pode
ser controlada administrativamente
por um órgão do Poder Executivo federal e tutelada por uma ala radical da
Igreja Católica.
DENIS LERRER ROSENFIELD, 57, doutor pela Universidade de Paris 1, é professor titular de filosofia da UFRGS
(Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e editor da
revista "Filosofia Política". É autor de "Política e Liberdade em Hegel" (Ática, 1995), entre outros livros.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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