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DEMÉTRIO MAGNOLI
Dos usos da pobreza
"Ajuda sem comércio é uma
cantiga de ninar uma canção
para adormecer as crianças". A definição é de Yoweri Museveni, o presidente de Uganda, que tem credenciais para falar: seu país é um dos raros exemplos de combate eficaz à Aids na África subsaariana.
Lula cantou uma cantiga de ninar
mundial na reunião convocada pelo
Brasil na véspera da abertura da 59ª
Assembléia Geral da ONU. Com o argumento de resgatar do fracasso
anunciado as metas do milênio de redução da pobreza, o presidente propôs aumentar a ajuda externa aos países mais pobres por meio da criação
de taxas sobre os fluxos de capitais e
sobre o comércio internacional de armas e até mesmo da filantropia corporativa.
A ajuda externa aos países mais pobres tem décadas de história e gerou
volumosos estudos econômicos. Os
economistas não encontraram correlação entre ajuda externa e redução da
pobreza. Diversos estudos revelam
que cerca de 80% do dinheiro direcionado à África subsaariana sob essa rubrica, entre as décadas de 70 e de 90,
retornaram em menos de um ano para os países ricos, em geral na forma
de investimentos em bancos suíços ou
suntuosas "villas" no Mediterrâneo.
Um caso célebre é o do financiamento, pelo Banco Mundial, do cultivo de
cacau na Guiné Equatorial, que gerou
uma corrida de ministros e de altos
oficiais militares do país para a aquisição das melhores terras e de automóveis de luxo.
Durante a Guerra Fria, a África subsaariana recebeu um fluxo substancial
de ajuda externa. O "dinheiro para os
pobres" destinava-se a comprar a fidelidade das elites dirigentes e a sustentar seus aparelhos administrativos
e militares. Hoje, a ajuda externa situa-se no ponto mais baixo da curva
histórica, em torno de 0,25% do PIB
conjunto dos países doadores. Na sua
"cantiga de ninar", Lula oferece fontes
"alternativas" de financiamento, que
substituiriam o compromisso assumido pelos países ricos em 2000 de aplicar 0,7% do PIB em programas internacionais de combate à pobreza.
O presidente francês Jacques Chirac
co-patrocinou a reunião convocada
pelo Brasil, prontificando-se a defender no FMI a criação de uma taxa sobre as finanças internacionais. Hoje, a
África subsaariana produz menos alimentos per capita do que no momento da descolonização, em 1960. A
União Européia transformou-se, nesse intervalo, de importadora em grande exportadora de alimentos. O protecionismo agrícola europeu, mantido a
golpes de subsídios muito superiores
a 0,7% do PIB, estrangula a agricultura
africana e exclui a África subsaariana
do comércio internacional. Chirac só
ficou ao lado de Lula depois de obter
garantias de que as propostas da reunião não incluiriam o tema vital da
abertura dos mercados europeus aos
produtos agrícolas dos países mais
pobres.
Na Assembléia Geral da ONU, George Bush discursou em defesa da invasão do Iraque. Minutos antes, Lula criticou a "globalização assimétrica e excludente" e, aparentemente esquecido
das bandeiras da reunião da véspera,
dirigiu o fogo retórico contra as "barreiras protecionistas e outros obstáculos ao equilíbrio comercial". O contraponto entre a "guerra ao terror" e a
"guerra à fome" funciona como plataforma da candidatura brasileira ao
Conselho de Segurança. No fim das
contas, uma canção de ninar não serve
apenas para adormecer as crianças.
Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras
nesta coluna.
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