São Paulo, quinta-feira, 23 de setembro de 2004

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DEMÉTRIO MAGNOLI

Dos usos da pobreza

"Ajuda sem comércio é uma cantiga de ninar uma canção para adormecer as crianças". A definição é de Yoweri Museveni, o presidente de Uganda, que tem credenciais para falar: seu país é um dos raros exemplos de combate eficaz à Aids na África subsaariana.
Lula cantou uma cantiga de ninar mundial na reunião convocada pelo Brasil na véspera da abertura da 59ª Assembléia Geral da ONU. Com o argumento de resgatar do fracasso anunciado as metas do milênio de redução da pobreza, o presidente propôs aumentar a ajuda externa aos países mais pobres por meio da criação de taxas sobre os fluxos de capitais e sobre o comércio internacional de armas e até mesmo da filantropia corporativa.
A ajuda externa aos países mais pobres tem décadas de história e gerou volumosos estudos econômicos. Os economistas não encontraram correlação entre ajuda externa e redução da pobreza. Diversos estudos revelam que cerca de 80% do dinheiro direcionado à África subsaariana sob essa rubrica, entre as décadas de 70 e de 90, retornaram em menos de um ano para os países ricos, em geral na forma de investimentos em bancos suíços ou suntuosas "villas" no Mediterrâneo. Um caso célebre é o do financiamento, pelo Banco Mundial, do cultivo de cacau na Guiné Equatorial, que gerou uma corrida de ministros e de altos oficiais militares do país para a aquisição das melhores terras e de automóveis de luxo.
Durante a Guerra Fria, a África subsaariana recebeu um fluxo substancial de ajuda externa. O "dinheiro para os pobres" destinava-se a comprar a fidelidade das elites dirigentes e a sustentar seus aparelhos administrativos e militares. Hoje, a ajuda externa situa-se no ponto mais baixo da curva histórica, em torno de 0,25% do PIB conjunto dos países doadores. Na sua "cantiga de ninar", Lula oferece fontes "alternativas" de financiamento, que substituiriam o compromisso assumido pelos países ricos em 2000 de aplicar 0,7% do PIB em programas internacionais de combate à pobreza.
O presidente francês Jacques Chirac co-patrocinou a reunião convocada pelo Brasil, prontificando-se a defender no FMI a criação de uma taxa sobre as finanças internacionais. Hoje, a África subsaariana produz menos alimentos per capita do que no momento da descolonização, em 1960. A União Européia transformou-se, nesse intervalo, de importadora em grande exportadora de alimentos. O protecionismo agrícola europeu, mantido a golpes de subsídios muito superiores a 0,7% do PIB, estrangula a agricultura africana e exclui a África subsaariana do comércio internacional. Chirac só ficou ao lado de Lula depois de obter garantias de que as propostas da reunião não incluiriam o tema vital da abertura dos mercados europeus aos produtos agrícolas dos países mais pobres.
Na Assembléia Geral da ONU, George Bush discursou em defesa da invasão do Iraque. Minutos antes, Lula criticou a "globalização assimétrica e excludente" e, aparentemente esquecido das bandeiras da reunião da véspera, dirigiu o fogo retórico contra as "barreiras protecionistas e outros obstáculos ao equilíbrio comercial". O contraponto entre a "guerra ao terror" e a "guerra à fome" funciona como plataforma da candidatura brasileira ao Conselho de Segurança. No fim das contas, uma canção de ninar não serve apenas para adormecer as crianças.


Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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