São Paulo, quinta-feira, 23 de setembro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Nanotecnologia e criacionismo

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

Imediatamente após o anúncio da retomada do projeto de criação de um instituto de nanotecnologia pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, ressurgem as críticas provenientes de setores da comunidade acadêmica e tecnológica. Esse é um arcaico traço comportamental brasileiro.
Para poupar tempo, recapitularemos brevemente alguns dos episódios mais recentes e mais esclarecedores. O desenvolvimento industrial brasileiro começa tardiamente, com Getúlio Vargas. Oportunisticamente, durante a 2º Grande Guerra Getúlio consegue "consentimento" dos EUA para iniciar nossa siderurgia, e nasce Volta Redonda. Isso ocorre apesar de renhida oposição dos cafeicultores paulistas e mineiros, convictos de que, sem as importações brasileiras de aço, não haveria divisas nos EUA para comprar café brasileiro.
Essa mesma síndrome se manifesta quase que simultaneamente no setor acadêmico, com a criação do ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica). Mais perversos que o ceticismo do brigadeiro Eduardo Gomes, figura suprema da Aeronáutica no Brasil, foram os obstáculos interpostos pelo Ministério da Educação e por acadêmicos de outras instituições de ensino superior. Não obstante foi dessa escola de engenharia que nasceram a indústria aeronáutica brasileira, o Programa Aeroespacial e a indústria dele derivada, além do pouco que existe de indústria eletrônica genuinamente nacional. E sobreviveu o ITA por causa da determinação férrea e do arrojo de seu criador, o brigadeiro Casimiro Montenegro.
Logo em seguida viu-se a criação da Petrobras ser achincalhada por um dos mais importantes jornais brasileiros, mobilizado por certos interesses também ligados às oligarquias agrárias.


Chegou a vez de malhar o futuro instituto de nanotecnologia, e o motivo é o de sempre: "brasa para a minha sardinha"


Todavia o episódio mais revelador foi o "débâcle" da política de informática, pois o assédio demolidor final no Congresso Nacional, encabeçado pelo senador Roberto Campos, foi assessorado, acreditem se quiserem, pela cúpula da indústria siderúrgica, que se tornara fornecedora do mercado americano e que fora ameaçada de retaliações, e também pela administração da Embraer, que temia, talvez com razão, que seus aviões Bandeirante não viessem a ser homologados pelas autoridades americanas. Não podemos, todavia, esquecer que o empresário de sucesso é obsessivo e coloca o seu empreendimento acima de quaisquer outros interesses.
Quando o MCT, na gestão Renato Archer, criou o Laboratório Nacional de Luz Sincrotron, instrumento hoje fundamental para a ciência e a tecnologia em seus mais diversos setores de atuação, da biotecnologia às ciências dos materiais, passando por processos químicos industriais e física atômica e molecular, foi a Sociedade Brasileira de Física que se manifestou formalmente contra o projeto. O motivo foi o temor de que recursos faltassem para as atividades tradicionais. Ora, nada há a reprochar, pois é saudável que novas propostas encontrem resistência e só vinguem pela força de sua racionalidade.
Pois bem, chegou a vez de malhar o futuro instituto de nanotecnologia e, embora não confessado, o motivo é o mesmo de sempre: "brasa para a minha sardinha". Porém algumas tentativas de justificativa são apresentadas. Uma das mais interessantes foi oferecida pela Protec, uma instituição criada recentemente no Rio de Janeiro com a finalidade de promover a inovação. Ela á contra a nanotecnologia porque esta seria uma pesquisa "de elite". E pesquisa de elite não é para o Brasil, certamente porque este nosso país não é de elite. Mas, se o Brasil nunca fizer pesquisa "de elite", nunca será um país de elite, não é? Parece que o espírito do senador Roberto Campos ainda sobrevive em certas mentalidades colonizadas.
É de um núcleo ideológico muito diferente que vem justificativa ainda mais eloqüente para a condenação do instituto de nanotecnologia. Vem da mesma central de pensamento político e institucional que acaba de oficializar o ensino obrigatório do criacionismo no Estado do Rio de Janeiro. Vamos jogar fora a cosmologia, a arqueologia, a geologia e o resto da ciência. Tudo teria acontecido há 4.000 anos, sem Big Bang. Jeová teria criado o homem e dele extraído Eva. Ainda bem que logo depois a coisa mudou. E o homem passou a nascer da mulher. Que alívio! Mas houve um momento de desenfreado incesto, que só foi corrigido depois de algumas gerações. Eis porém que o episódio de moralidade duvidosa se repete depois do Dilúvio.
Será isso que vão ensinar às crianças fluminenses? Ainda bem que o demônio criou Freud para aliviar a culpa.
É dessa mesma central de radiação de idéias brilhantes que vem o segundo argumento contra o instituto de nanotecnologia. Institutos seriam obsoletos, moderninhas são as "redes". O conceito de rede surgiu em meados dos anos 60, quando o governo americano, procurando estimular a pesquisa em certos materiais, mais precisamente em semicondutores compostos III-V, além de privilegiar certos laboratórios localizados em universidades e em outras instituições, forneceu meios para facilitar o intercâmbio de idéias entre eles (e otimizar o uso compartilhado de equipamentos), pois reconhecia que trocas intelectuais entre pesquisadores eram essenciais.
Ora, se essas são as razões fundamentais para a criação de redes, ninguém pode deixar de reconhecer que esse objetivo é muito mais amplamente atingido com a redução das distâncias e de outros óbices a uma efetiva interação entre os parceiros. E isso ocorre se os pesquisadores estiverem juntos em uma mesma instituição, e não espalhados em uma rede. Qualquer benefício que possa ocorrer com a formação de redes será imensamente ampliado na constituição de uma unidade centralizada de pesquisas. O ideal é que um instituto onde o conhecimento especializado alcance grande concentração, ou seja, massa crítica, atue como âncora para uma rede formada por grupos de pesquisa já estabilizados, distribuídos geograficamente, que realizem uma atividade de difusão científica e tecnológica, além de pesquisas próprias.

Rogério Cezar de Cerqueira Leite, 73, físico, é professor emérito da Unicamp e membro do Conselho Editorial da Folha.


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