São Paulo, sexta-feira, 23 de setembro de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Eu digo sim ao sim

JOSÉ SERRA

O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil? Todos nós teremos de responder a essa questão no referendo do mês vem. Votarei "sim". E, com este artigo, digo "sim ao sim", convidando-os a ceder à objetividade que salva vidas. Intento, na verdade, estabelecer um diálogo com os que escolherão a outra opção e com os ainda hesitantes. Uma arma não é uma causa suficiente para um assassinato, mas, com freqüência, é uma causa necessária. Tanto o bem como o mal requerem meios para que possam ser exercidos. Vamos prover os que potencializam o bem; façamos um esforço para nos livrar daqueles que nos predispõem para o mal.


Trata-se de convocar o Estado para que recupere o monopólio do uso da força, como prevê, de resto, a Constituição


Prefiro o humanismo dos números, ainda que a expressão pareça exótica, às perorações que dividem. Parafraseando uma personagem de Umberto Eco em "O Nome da Rosa", um mundo sem labirintos não seria muito melhor do que este, mas seria de todo desejável que houvesse regras para andar nos labirintos e deles sair. Na esfera pública, nossas escolhas têm de ser instruídas pela ciência, pela objetividade, pelo que nos indica a experiência empírica, que pode, então, ser transformada num conceito e, por conseqüência, gerar uma norma. Por mais que eu tenha -e tenho- a convicção de que as pessoas não devem andar armadas, a ética da responsabilidade impõe-me olhar para os dados e cercar as margens de erro.
Em 2004, caiu 8,2% o número de pessoas mortas por arma de fogo no Brasil. Desde o dia 15 de julho de 2004, mais de 440 mil foram destruídas. Como negar que esse bom augúrio, o primeiro em 13 anos, coincide com a campanha em favor do desarmamento? Levantamentos do Centro de Estudos Brasileiros de Oxford e da Unesco, em parceria com os ministérios da Justiça e da Saúde, indicam que a diminuição de homicídios por essa modalidade se deve, em boa parte, à redução do número de armas em circulação. Se lhes digo apenas "votem sim", faço-me conselheiro atrevido, ainda que bem intencionado. Se opto pelas evidências, faço-me parceiro de uma escolha que, acredito, realiza um bem coletivo.
Não sou dado a desautorizar os que não comungam das minhas idéias e escolhas. Acho razoável a argumentação de que os portadores de armas dispostos a praticar o mal buscarão maneiras de burlar a lei; também não é fora de propósito a convocação hoje dirigida às várias esferas do Estado brasileiro para que aja com mais método, ciência e rigor no combate à violência. Todos queremos sair de certos labirintos. Não obstante, peço que considerem: a cada mal o seu remédio.
Segundo o Departamento de Homicídios da Polícia de São Paulo, na maioria dos casos em que há uma ocorrência com arma de fogo, agressor e vítima se conhecem, não se vinculam a nenhuma atividade criminosa, e a motivação do ato é quase sempre fútil. Não estamos falando de relações puramente privadas, aquelas que podem e devem ser preservadas da ação normativa do Estado. Ao contrário: a questão tomou dimensões alarmantes; fez-se pública.
Nada menos do que 34 mil pessoas, em todo o país, foram vítimas fatais de arma de fogo em 2004. Elas são responsáveis por mais de 70% de todos os homicídios. Uma comparação, por mais óbvia que seja, há de nos estarrecer: desde o início da Guerra do Iraque, em março de 2003, morreram pouco mais de 25 mil pessoas. Mata-se a bala, por ano, no Brasil, mais do que em um país conflagrado em dois anos e meio. Entendo que intervir nessa realidade é um dever do Estado brasileiro; mais do que isso, é um imperativo.
Sabemos, ademais, que armas compradas por cidadãos honestos vão parar, muitas vezes, nas mãos de bandidos. A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo informa que, entre 1993 e 2000, mais de 100 mil foram roubadas, furtadas ou perdidas. Uma pesquisa realizada no Rio de Janeiro pelo Iser (Instituto de Estudos da Religião) e outra feita em São Paulo pelo IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) apontam que, com freqüência, o cidadão que se supõe seguro ao portar uma arma acaba se ferindo ou mesmo sendo morto por ela. Qualquer morte nos ofende. A morte de um inocente nos condena.
Na cidade de São Paulo, lançaremos em breve um programa específico de combate e prevenção à violência, com ênfase nas localidades onde os números são particularmente preocupantes. Todos sabemos que as questões estruturais que tornam o crime um parasita perverso da pobreza, quando não a seqüestra para a sua causa, continuam a cobrar respostas adequadas dos vários níveis de governo.
Conclamo aqui, então, a que façamos o que está ao nosso alcance para que se possa chegar mais longe. Não se trata de uma panacéia para jogar nos ombros do cidadão de bem uma responsabilidade do Estado. Ao contrário, trata-se de convocar esse Estado para que recupere o monopólio do uso da força, como prevê, de resto, a Constituição, levando, assim, paz ao cidadão.
Caetano Veloso, em tempos de confrontação ideológica, quando "ouvir" o outro era proibido, cantou: "Eu digo não ao não". No referendo, creio que seja preciso dizer "sim ao sim".

José Serra, 63, economista, é prefeito de São Paulo. Foi senador pelo PSDB-SP (1995-2002) e ministro do Planejamento e da Saúde (governo Fernando Henrique Cardoso).
@ - prefeito@prefeitura.sp.gov.br



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