São Paulo, segunda-feira, 23 de outubro de 2006

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Voto chique e voto-opção

CANDIDO MENDES


No infinitésimo que o separa da vitória no segundo turno, Lula só tem a insistir, para ganhá-lo, na fidelidade à opção pela mudança


A DIREITA fatura a nossa demissão cívica. Aí estão os votos de Clodovil e Enéas, na seqüência de Maluf, da larga maioria reeleita dos mensaleiros e sanguessugas e da perda de mandato por Biscaia, Paulo Delgado, Greenhalgh ou Delfim Netto, a definir a cara do Poder Legislativo que o Brasil quer.
O país que hesita entre Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Geraldo Alckmin (PSDB) se arrisca a perigosíssima renúncia cívica. Viveu o garrote do álibi moralista do status quo. Assistiu à autodesmoralização do Congresso Nacional, à perpetuação do caixa dois e à alforria ainda da corrupção política generalizada.
Rachou-se, menos do que por uma fácil geografia regional, pela diferença dos toques de melhoria coletiva do país de fora.
O povo de Lula nele votou tanto quanto o Norte e o Nordeste experimentam hoje a expansão indiscutível de suas economias. E também por serem a área nacional menos exposta à tirania mediática ou do ouvido imposto do país-bem, onde se travestiu o Brasil do status quo. Foi o que se alienou por inteiro do escândalo parlamentar, como também dos seus vingadores, em alarmante insensibilidade nacional.
O mais adiantado dos eleitorados brasileiros é também -para a inquietação que apenas começa- o que indica essa teratologia de escolhas políticas, na tristeza estarrecedora dos mais votados em São Paulo.
Os catastrofistas de plantão estão aí para ver o quanto o termômetro democrático marca, sem quartel, o avanço -ou a regressão- da cultura cívica do país.
O voto grotesco anestesia o caminho à instabilidade institucional. Vai para além da desmobilização, entrando no cinismo político, inerme a para onde vá a nação, a que custo ou a que morfina. Desertou-se de vez do voto ideológico na insipidez ou no vácuo das propostas inodoras, inexistentes, de Alckmin.
A candidatura Lula da Silva se assentou -diante do massacre mediático- no seu eleitorado de base e nessa primeira consciência com que arranca seu rumo histórico, antes mesmo de um programa que explicite o projeto político. Tanto Lula sem o PT e sem herdeiros se transforma na opção pelo outro Brasil, tanto se impõe uma concentração de esquerda capaz de mobilizar a consciência de mudança, de vez, e resistir à impostura dos reformismos. Deveremos a Alckmin a desenvoltura com que se somam, em resultado nulo, o moralismo, a inércia política e, sobretudo, a vacuidade do anúncio desenvolvimentista, que se transformou em reflexo condicionado do nada a declarar.
Lula não perde mais, nos quase 49% de votos que demonstraram os números do país, a resistir à ciranda reformista contra o outro Brasil, que se delineia e vota, e sabe em quem. No infinitésimo que o separa da vitória no segundo turno, só tem a insistir, para ganhá-lo, na fidelidade à opção pela mudança, que resistiu aos pruridos da esquerda de Ipanema, à subcultura da radicalidade e à decepção com o partido diferente.
A história é trágica, tanto a democracia -e é hoje o nosso caso- passa por um voto livre, por isso mesmo exposto, também, a todas as manipulações. Mas nele votam agora os que não querem o Brasil de Clodovil ou Enéas. Ou, sobretudo, não se conformam apenas com o país decente, à custa da nação injusta.

CANDIDO MENDES , 79, membro da Academia Brasileira de Letras e da Comissão de Justiça e Paz, é presidente do "senior Board" do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).


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