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JOSÉ SARNEY
A panela dos poderes
COM O PASSAR dos anos, já é
possível ver as consequências que vão surgindo e as
tendências que se vão formando
com a nova (?) Constituição de
1988. Acho que essa avaliação está
passando ao largo dos estudiosos
do direito e da sociologia política. A
verdade incontestável é sua ambiguidade, sua dupla face: uma com
normas próprias do regime parlamentarista, outra do presidencialismo predominante.
Vamos examinar especificamente a divisão clássica dos três Poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Foi Montesquieu quem primeiro sistematizou essa divisão,
embora ela já tivesse raízes inglesas (Locke). Foram estes certamente que, com a "rule of law",
exerceram de maneira empírica
esta separação, que veio a desaparecer depois que o Parlamento absorveu o Executivo e entregou ao
rei as funções honoríficas de chefe
de Estado.
Mas esse balanço de forças foi esquematizado pelos americanos na
Constituição de Filadélfia de 1787.
Era uma trindade lógica. O Judiciário, como guarda da Constituição,
fiscalizava o Executivo e o Legislativo, e este, particularmente, controlava aquele. Aqui a Constituição
de 88 explicitou de tal modo a independência que está desaparecendo
a harmonia. Não no sentido de
comportamento nem no conceito
musical, mas na quebra do "acordo
entre elementos diversos que resulta em algo agradável de ver ou
ouvir". O campo da harmonia e da
independência passou a ter linhas
divisórias difíceis de detectar.
A Constituição de 88 criou outros poderes também independentes, como o Ministério Público, a
Polícia Federal, o Tribunal de Contas, enquanto a sociedade transformou a mídia, antes chamada quarto poder, em superpoder. Esses se
tornaram tão fortes que surgiu a
necessidade de controles externos.
Mas o que eu desejava mesmo é
constatar que esse modelo de privilegiar a independência sem harmonia está criando um arquipélago,
em que cada um busca ampliar seu
campo de mando em prejuízo de
uma coisa mais alta que é o próprio
funcionamento da democracia.
A falta de harmonia está, como
no universo em expansão, onde se
afastam as estrelas, afastando os
poderes um dos outros, e o regime
passa a funcionar em situações de
atrito permanente, resultando na
ineficiência do Estado e em detrimento dos serviços que ele deve
dar à sociedade. Os direitos individuais e políticos sofrem ataques
restritivos. Vejam-se o número de
obras paradas no país inteiro, o poder pessoal apropriado por alguns
agentes dos poderes que determinam o que se deve fazer e o que
não se deve.
Assim, todos ampliam seu campo de ação e surge um Estado desarticulado, capenga e autoritário.
Como se diz no Nordeste, "panela
que muitos mexem, ou sai insossa,
ou salgada".
JOSÉ SARNEY escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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