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São Paulo, domingo, 23 de novembro de 2003

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TENDÊNCIAS / DEBATES

Quem sabe?

JÉRÔME BINDÉ e JEAN-JOSEPH GOUX


O conhecimento inclui dimensões sociais, éticas e políticas que não podem ser reduzidas à tecnologia

Galileu revolucionou a ciência e a tecnologia ao afirmar que a natureza é escrita na linguagem dos números. A nova revolução tecnológica afirma que a sociedade é escrita na linguagem da informação. Mas de que tipo de sociedade estamos falando?
O 0 e o 1 são os blocos básicos com os quais será construído o futuro. Dois algarismos apenas formam o alfabeto do fenômeno mais complexo dos tempos modernos: a tecnologia de informação e comunicação. Novas formas de atividade e expressão, novas práticas de trabalho e de lazer já emergiram, e as velhas estão passando por transformações radicais.
Essas mudanças tremendas estão ocorrendo em escala global porque a partilha de informações em rede está, pouco a pouco, alcançando todo o planeta. Ainda restam grandes disparidades, especialmente entre os hemisférios Sul e Norte, mas esses processos estão longe de completos. Em que direção eles nos estão conduzindo? Como devem ser implementados e regulamentados? Quais devem ser os envolvidos?
Essas perguntas todas levaram a ONU a convocar a Cúpula Mundial sobre a Sociedade de Informação, que terá lugar em Genebra em dezembro. Essa cúpula reunirá governos, ONGs, participantes-chave no setor privado e na sociedade civil, a mídia e organizações que integram o sistema da ONU. Prevendo alguns dos tópicos constantes da agenda da cúpula, a Unesco recentemente lançou um novo ciclo em sua série de fóruns de filosofia. Para situar-se numa discussão diretamente relacionada a suas áreas de competência, ela postulou a pergunta ""Quem sabe?" a 20 figuras de destaque de uma série de áreas geográficas e intelectuais que participam do Fórum de Filosofia da Unesco.
Alguns dirão que essa pergunta já é obsoleta. Para que memorizar, se máquinas podem fazê-lo melhor e mais rapidamente do que nós? De que adianta conhecer um teorema ou uma receita, se podemos acessá-los facilmente na web? Essas perguntas não deixam de fazer sentido. Mas será que devemos concluir que a sociedade da informação conduz a uma sociedade caracterizada pela amnésia e ignorância? Deve a derrota de um homem por uma máquina numa partida de xadrez nos fazer colocar em dúvida aquilo que é intrinsecamente humano? Não. Precisamos repensar o problema em novos termos.
O Fórum de Filosofia da Unesco mostrou que a pergunta ""Quem sabe?" só terá perdido a relevância se confundirmos informação com conhecimento. No entanto essas são duas coisas distintas, embora relacionadas, na medida em que a informação é uma ferramenta do conhecimento.
A informação é uma técnica que tem por objetivo eliminar o elemento do ruído na comunicação. Mas comunicação não é inovação. Calibrar as palavras e mensagens melhora a transmissão do conhecimento, mas não o cria. O ponto forte da informação também é sua limitação. A inovação ocorre apenas quando existe uma busca pelo que é novo; não existe pesquisa -logo, não há progresso- sem conhecimento e sem a curiosidade e a experiência, as falhas e as tradições que ele pressupõe. É o conhecimento que dá sentido à informação.
O conhecimento inclui dimensões sociais, éticas e políticas que não podem ser reduzidas à tecnologia. Uma sociedade que fosse exclusivamente de informação seria um conjunto de enormes redes interligadas, eficazes e ágeis, mas que não iria produzir inovações. A informação não é base suficiente sobre a qual erguer uma sociedade. Mas a sociedade se baseia no diálogo, não em bits de informação. Assim, ""sociedades do conhecimento" parece ser uma expressão mais apropriada do que ""sociedade da informação" para designar os fenômenos dos quais estamos tratando.
Existe apenas uma sociedade da informação, já que existe apenas um padrão de dados e comunicações. As sociedades do conhecimento existem no plural, já que, na medida em que dizem respeito à criatividade, elas necessariamente implicam diversidade e partilha.
Sem o intercâmbio de conhecimento não podem existir avanços econômicos, científicos ou políticos de monta em nível local, regional ou global. A partilha equitativa do conhecimento será a origem da riqueza do amanhã.
Isso também é verdade no que diz respeito à vida cívica. Sem cultura democrática -ou seja, sem a tradição e o aprendizado dos costumes e valores democráticos-, a informação será usada para as finalidades dos regimes oligárquicos ou tirânicos, tanto quanto para as dos regimes fundamentados em processos decisórios públicos e compartilhados. O conhecimento se tornou um potencial-chave de investimento em todas as esferas da atividade humana.
É por essa razão que a Unesco decidiu dedicar às sociedades do conhecimento seu primeiro relatório mundial, a ser publicado em 2005, e também organizar uma mesa-redonda sobre o mesmo tema durante sua conferência geral de outubro de 2003. Afinal, a idéia do conhecimento não resume, melhor do que qualquer outra, as exigências implícitas na educação, ciência e cultura? Nossa meta é promover uma reflexão progressista sobre os desafios postos pelas sociedades emergentes. Diante da revolução do conhecimento, a Unesco se mantém fiel a seu papel essencial: atuar como laboratório das idéias do amanhã.


Jérôme Bindé é diretor da Divisão de Antecipação e Estudos de Perspectivas da Unesco. Jean-Joseph Goux é professor de filosofia na Universidade Rice (Texas).

Tradução de Clara Allain



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