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São Paulo, domingo, 23 de novembro de 2003

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Um apelo à razão

CLÁUDIO GUIMARÃES DOS SANTOS


Adolescentes que não sofram de nenhum transtorno cognitivo sério são, sim, capazes de entender regras simples

Apesar de haver cursado, por algum tempo, a Faculdade de Direito do largo São Francisco, não pretendo me envolver nas doutas disputas jurídicas que se têm travado em torno da redução da maioridade penal. Contudo o fato de ter passado quase toda a minha vida de médico, professor e pesquisador investigando o funcionamento da mente humana impede que eu me abstenha de manifestar, aqui, a minha perplexidade em relação à manipulação numerológica que parece ocupar parte das pessoas envolvidas nessa discussão.
Alguns debatedores parecem acreditar que, durante os velozes 24 meses que separam os 16 dos 18 anos, uma radical transformação ocorreria no psiquismo dos jovens, fazendo com que deixassem para trás a irresponsabilidade e adquirissem, de uma vez por todas, a capacidade de compreender e de aplicar regras sociais elementares, tornando-se finalmente imputáveis. Ora, "pré-conceitos" à parte, os conhecimentos neurobiológicos e neuropsicológicos de que dispomos até o momento não nos autorizam a sustentar semelhante idéia, apontando, aliás, no sentido oposto.
E não é preciso ser estudioso do comportamento humano para saber que adolescentes que não sofram de nenhum transtorno cognitivo sério são, sim, capazes de entender regras simples, do tipo "mão na bola, dentro da área, é pênalti" ou "matar é um ato criminoso", sendo igualmente aptos a compreender que a desobediência dessas regras acarreta punições: o chute livre a gol, no primeiro caso, e a prisão, no segundo.
Infelizmente, a irracionalidade desses debatedores não pára por aí, já que, frequentemente, as mesmas pessoas que acreditam serem os jovens de 16 anos cognitivamente incapazes para lidar com regras básicas de convívio social também defendem, contraditoriamente, a tese de que eles seriam competentes para votar... Para vermos como essas idéias equivocadas conduzem a situações absurdas, peço que me acompanhem num pequeno "experimento de pensamento".
Imaginemos que, num dia de eleição, um eleitor de 16 anos se indisponha com o mesário, de 19, saque um revólver e o mate. Evidentemente, à luz de nossa atual legislação, o precoce assassino faria jus a um tratamento especial, por não ter ainda atingido a maioridade penal. Todavia, se o autor dos disparos tivesse sido o mesário de 19 anos, seria recomendável que ele contratasse os serviços de um bom advogado, pois estaria numa situação muito delicada...
Ora, com base no que conhecemos sobre o funcionamento cognitivo humano, será racional tratar esses dois jovens de maneira tão desigual?
Peço que o leitor atente para o fato de que não estou nem mesmo perguntando se é justo proceder assim, o que talvez suscitasse longas discussões sobre o significado da palavra justiça. Em vez disso, estou modestamente indagando se essa desigualdade é justificável do ponto de vista da razão.
O pior de tudo é que, ao verem a sua inconsistência claramente exposta, esses debatedores lançam um último e desesperado argumento: se reduzida a maioridade penal, estaríamos condenando "indefesos jovens de 16 anos" ao convívio insuportável com criminosos mais velhos e experientes.
Ora, não creio que alguém possa negar que as nossas prisões são desumanas e pouco adequadas à eventual reabilitação dos infratores. Todavia condições carcerárias decentes não devem ser privilégio de nenhuma faixa etária: enquanto seres humanos, todos os presos merecem um tratamento digno. Além disso, a necessária reforma do sistema prisional é um tema que apenas tangencialmente se relaciona com a questão da redução da maioridade penal.
Mais ainda, à semelhança do indagado antes, será que jovens de 16 anos diferem tanto assim dos de 18 para que esses dois contingentes recebam tratamento tão diverso? Novamente, não pergunto onde está a justiça dessa posição, mas onde está a sua racionalidade.
No fundo, todos sabemos que jovens de 16 anos, brancos ou negros, pobres ou ricos, são igualmente capazes de compreender que o desrespeito a regras pode acarretar o sofrimento de punições. Não fosse assim, nenhum adolescente conseguiria jogar futebol. Por outro lado, todos também sabemos que, desrespeitando completamente normas elementares de convívio social, jovens de 16 anos cometem atrocidades: a agressão ao índio pataxó em Brasília e o assassinato do casal em Embu-Guaçu são evidências emblemáticas disso.
Penso, pois, ser preciso que as autoridades do Poder Executivo, bem como os nossos representantes no Congresso Nacional, reflitam seriamente sobre esse assunto, em vez de se comprazerem com malabarismos numerológicos, na busca do "Graal" inatingível de uma "maioridade perfeita". Aliás, mais do que refletir, é preciso que eles ajam para que, jovens ou idosos, possamos todos contar com a segurança mínima que nos permita viver com alguma paz.
Considero o estado de violência a que chegamos uma emergência indiscutível, cujo equacionamento não se dará apenas por intermédio das imprescindíveis medidas de longo prazo destinadas a corrigir as graves distorções sociais no país. O que diria um desses debatedores se, após sofrer um infarto do miocárdio, recebesse do médico não os cuidados compatíveis com a urgência de seu caso, mas somente orientações gerais quanto à melhor maneira de prevenir o aparecimento de sua doença?


Cláudio L. N. Guimarães dos Santos, 43, médico e neurocientista, é professor de pós-graduação na Unifesp.


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