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MARINA SILVA
Fazendo do passado passado
CINCO DIAS separam duas datas. A primeira, 15 de novembro, celebra a proclamação
da República. A segunda, 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, homenageia Zumbi
dos Palmares. Os cinco dias, porém, representam o atraso de um
século.
O fim oficial da escravatura veio
com a Lei Áurea, em 13 de maio de
1889. E apesar do esforço abolicionista, a resistência escravocrata
era tanta que, além da demora em
dar fim à infâmia, não foram tomadas medidas complementares para
garantir aos novos cidadãos, os ex-escravos, direitos fundamentais,
como moradia, terra ou qualquer
tipo de indenização. Foram abandonados à própria sorte, sem nenhuma proteção do Estado. A
maioria passou da condição de escravo para a da semiescravidão.
Os grilhões já não eram tão visíveis, mas estavam lá, no estigma
deixado pela escravidão, numa estrutura social que aviltou a dignidade dos negros, roubando seus direitos mais elementares. Os libertos eram filhos daqueles que foram
feitos brasileiros sem querer, trazidos como rebanho, marcados a ferro, condenados ao trabalho pesado.
A cidadania não veio tampouco
com a mudança da Monarquia para
a República, um ano e meio depois.
Pois a maior parte do pensamento
hegemônico ainda não enxergava
aquele enorme contingente populacional como integrante legítimo
do país. Nem os ex-escravos, aliás,
se viam de forma diferente. Eram
cidadãos de segunda classe, para
dizer o mínimo. Aprisionados pela
pobreza, pelo analfabetismo, pelas
marcas do passado recente. Com
eles, mesmo sem se dar conta, sofria o país, que se construía sobre
um alicerce tão mal resolvido, tão
injusto, tão limitador. E que até hoje mantém, pela repetição, a marca
da injustiça.
Vozes, vidas, dores esquecidas e
caladas, história. Os 120 anos de
República foram também os anos
do cativeiro insepulto, da luta pela
verdadeira liberdade. Continua a
batalha para reparar o que não foi
feito naquela época. Muitos apostaram que o tempo sanaria todas as
dores ou as diluiria.
Contudo, o simples passar do
tempo não cura. Tais violências,
como disse Hannah Arendt, em "A
Condição Humana", por serem tão
irreversivelmente traumáticas para os indivíduos e para as sociedades, são, citando a expressão de
Kant, "ofensas de mal radical".
O povo brasileiro tem atravessado seu próprio deserto. Agora, ainda no esforço para tirar da pobreza
enorme parcela da população, o
Brasil se ama mais, se conhece
mais, se entende melhor. Começa a
ver-se como índio, branco, negro,
amarelo, caboclo. Tem sido um caminho árduo, demorado. Mas já é
um bom começo para comemorar
as duas datas.
contatomarinasilva@uol.com.br
MARINA SILVA escreve às segundas-feiras nesta
coluna.
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