São Paulo, sexta-feira, 23 de dezembro de 2005

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Não à atual política de segurança pública

DENIS MIZNE

Há exatos dois meses, o Brasil passou por um momento histórico: o referendo sobre a proibição do comércio de armas de fogo. Primeira consulta popular sobre um tema diretamente ligado ao nosso cotidiano e um raro momento de participação democrática direta, o referendo certamente deixou várias lições e vários recados às nossas autoridades que precisam ser debatidos e analisados.
Quem acompanhou a breve campanha sobre o referendo pôde perceber que o ato de votar não escondia muitos significados. Levantou discussões diversas, como o impacto da crise de corrupção que atravessa o governo Lula ou a percepção de boa parte da população de que haveria coisas mais urgentes para colocar para decisão direta do povo. Todos esses fatos apareceram em pesquisas internas e na pesquisa CNT/Sensus de novembro último.
O recado mais evidente, contudo, não se refere aos pontos que os cidadãos brasileiros tentaram refletir em seu voto de forma difusa, mas ao clamor pela urgência de uma política abrangente e eficiente de segurança pública.
Ao contrário do que gostariam e tentaram dizer alguns dos defensores das armas e de sua indústria, o severo controle sobre as armas é parte necessária dessa política. O povo brasileiro, como mostra a mesma pesquisa, repudia fortemente as armas de fogo e, mesmo após o resultado das urnas, continua decidido a não ter uma delas. Essa foi a opinião de 80% dos entrevistados antes e depois do referendo.
O que pode parecer uma enorme incongruência na verdade mostra apenas que o "não às armas" não pareceu suficiente para resolver o problema da violência -o que nós, defensores do "sim", sempre argumentamos- e que o "não" à atual política de segurança pública parecia maior e mais necessário neste momento.


Cabe aos governantes ter compromisso com políticas de segurança que privilegiem a prevenção e invistam na juventude

É fundamental compreender esse recado para construir uma política pública de segurança que atenda aos anseios da população e seja capaz de combater o crime por meio de ações coletivas, e não relegando um problema dessa magnitude às mãos de uma população armada e amedrontada.
À nossa volta estão dois exemplos contundentes do tipo de política que funciona. O distrito do Jardim Ângela, em São Paulo, conhecido no final da década de 90 como o local mais violento do mundo, em quatro anos observou uma redução em mais de 75% nos homicídios. Trata-se de um distrito onde vivem quase 300 mil pessoas e que conta com um quadro social gravíssimo.
O que trouxe essa enorme mudança passa longe de políticas que valorizam as armas ou a famosa "rota na rua". Foi a ação decisiva da comunidade associada a ONGs e a governos que investiram ao mesmo tempo em ações preventivas para jovens de 15 a 24 anos, no desarmamento e no policiamento inteligente e próximo da população.
Essa ação, que respeita a lei e garante direitos, trouxe os resultados que os parlamentares defensores das armas jamais foram capazes de implementar, sempre tendo apostado na lógica individual e brutal das forças de segurança, colhendo resultados cuja fama dispensa maiores referências.
Outro exemplo contundente e que tem regras mais ou menos parecidas, mas somadas a uma ação decisiva da prefeitura e da Guarda Municipal, está na cidade de Diadema, que era a mais violenta do Estado e que hoje tem sua taxa de homicídios quase 70% menor do que cinco anos atrás.
Não foi à toa que nesses locais o "sim" venceu o referendo. Uma vez que a segurança começa a mostrar resultados, a população entende que o desarmamento é parte importante da solução.
Nesse sentido, é importante ressaltar que o referendo trará pouco impacto sobre a maior vitória que a população brasileira teve em sua história recente de luta pela paz: a aprovação do Estatuto do Desarmamento.
Se é verdade que a proibição do comércio de armas aceleraria o processo de construção de uma sociedade mais pacífica, também é verdade que os demais 36 artigos do estatuto que continuam valendo, associados ao processo de conscientização sobre os riscos inerentes à posse de armas, garantirão a continuidade das políticas de desarmamento e controle de armas que têm contribuído para salvar milhares de vidas nos dois anos de sua aplicação.
Os milhões que a indústria de armas assumidamente investiu na campanha de deputados e na campanha específica do referendo só ajudaram a retardar a batalha, mas não evitaram que a população brasileira tomasse ainda mais consciência de que o caminho de uma sociedade armada só pioraria o nosso já desastroso quadro de violência.
A demanda por mais segurança está posta. O caminho para atendê-la já está dado. Cabe agora aos governantes -aos atuais e aos que pretendem se eleger- mostrar claramente seu compromisso com a construção de políticas públicas de segurança que privilegiem a prevenção, invistam na juventude e nos bairros mais afetados pelo crime e pela violência, apóiem e valorizem a polícia inteligente e próxima da população e continuem o processo de controle de armas, principalmente combatendo o contrabando.
Mais do que esperar, a população brasileira exige o fortalecimento dessas políticas o quanto antes para que efetivamente possamos viver em uma sociedade em paz.

Denis Mizne, 29, advogado, é fundador e diretor-executivo do Instituto Sou da Paz.

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