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CLAUDIO ANGELO
Sovietes e eletricidade
PELO MENOS em um aspecto o
governo Lula ainda se mantém bastante socialista: na
sua obsessão com grandes projetos
de infra-estrutura, especialmente
de geração de energia, lembra o desenvolvimentismo bolchevique,
segundo o qual o socialismo era
igual a sovietes mais eletricidade.
Na URSS, esse projeto atropelou
qualquer debate público e deixou
de herança um passivo socioambiental capaz de arrepiar até o demônio de Bulgakov. Aqui, 90 anos
após a Revolução Russa, ensaia-se
um processo análogo, do qual as
declarações do presidente sobre a
"trava" ambiental do Brasil são
apenas um aperitivo.
Que o país precisa aumentar sua
oferta de energia na próxima década é ponto pacífico. Mesmo assumindo crescimento de 4% ao ano, a
previsão da EPE (Empresa de Pesquisas Energéticas) é que até 2015
seja preciso incrementar essa oferta em 39 mil megawatts.
A questão é como fazer isso. E
aqui a resposta dos tecnocratas de
Brasília contém invariavelmente
duas palavras: "hidrelétricas" e
"Amazônia". E aqui o caldo entorna, como tem mostrado a recente
confusão em torno das usinas de
Santo Antônio (3.150 MW) e Jirau
(3.300 MW), no rio Madeira.
Parte da resistência decorre do
desprezo completo com o qual o
setor ambiental é tratado pelos fazedores de energia. Esse desprezo,
aliado à tradição do fato consumado do setor elétrico, se reflete na
confecção de EIA-Rimas (estudos
e relatório de impacto ambiental)
para cumprir tabela. Não é preciso
ser cientista para se constranger
com o EIA-Rima das usinas do Madeira. Mas os cientistas que examinaram o calhamaço foram além do
constrangimento. O hidrólogo José Galizia Tundisi, a quem não se
pode acusar de ecoxiita, pediu a
realização de audiências técnicas
para discutir o projeto e alertou
que, sem uma pausa séria para reflexão, as usinas podem ser ameaça
a nada menos que a evolução das
espécies nos rios da Amazônia.
Num horizonte mais amplo, até
2030, a mesma EPE confirma a região Norte como o grande pote de
ouro energético do país: 43% do
potencial hidrelétrico nacional. No
mapa das suas ambições estão bacias como as do rio Trombetas, no
Pará, e do Jari, entre Pará e Amapá,
além da do Sucunduri, no Amazonas. Um leitor mais atento notará
que o mapa dessas regiões -ops!-
se sobrepõe ao das zonas prioritárias para a conservação da biodiversidade. Daí a movimentação no
governo para impedir a criação de
unidades de conservação em áreas
com potencial hidrelétrico.
Enxergar a Amazônia com os
olhos da velha esquerda, como mera reserva de energia, minério e
terras, é algo que já foi tentado pela
velha direita (os militares). Não
funcionou. Lula tem nas mãos, no
seu segundo mandato, a oportunidade de dar a esse patrimônio um
destino mais racional. Do contrário, continuará a ser assombrado
por leis, ambientalistas, índios,
quilombolas e Ministério Público.
CLAUDIO ANGELO é editor de Ciência.
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