São Paulo, sábado, 23 de dezembro de 2006

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CLAUDIO ANGELO

Sovietes e eletricidade

PELO MENOS em um aspecto o governo Lula ainda se mantém bastante socialista: na sua obsessão com grandes projetos de infra-estrutura, especialmente de geração de energia, lembra o desenvolvimentismo bolchevique, segundo o qual o socialismo era igual a sovietes mais eletricidade. Na URSS, esse projeto atropelou qualquer debate público e deixou de herança um passivo socioambiental capaz de arrepiar até o demônio de Bulgakov. Aqui, 90 anos após a Revolução Russa, ensaia-se um processo análogo, do qual as declarações do presidente sobre a "trava" ambiental do Brasil são apenas um aperitivo.
Que o país precisa aumentar sua oferta de energia na próxima década é ponto pacífico. Mesmo assumindo crescimento de 4% ao ano, a previsão da EPE (Empresa de Pesquisas Energéticas) é que até 2015 seja preciso incrementar essa oferta em 39 mil megawatts. A questão é como fazer isso. E aqui a resposta dos tecnocratas de Brasília contém invariavelmente duas palavras: "hidrelétricas" e "Amazônia". E aqui o caldo entorna, como tem mostrado a recente confusão em torno das usinas de Santo Antônio (3.150 MW) e Jirau (3.300 MW), no rio Madeira.
Parte da resistência decorre do desprezo completo com o qual o setor ambiental é tratado pelos fazedores de energia. Esse desprezo, aliado à tradição do fato consumado do setor elétrico, se reflete na confecção de EIA-Rimas (estudos e relatório de impacto ambiental) para cumprir tabela. Não é preciso ser cientista para se constranger com o EIA-Rima das usinas do Madeira. Mas os cientistas que examinaram o calhamaço foram além do constrangimento. O hidrólogo José Galizia Tundisi, a quem não se pode acusar de ecoxiita, pediu a realização de audiências técnicas para discutir o projeto e alertou que, sem uma pausa séria para reflexão, as usinas podem ser ameaça a nada menos que a evolução das espécies nos rios da Amazônia.
Num horizonte mais amplo, até 2030, a mesma EPE confirma a região Norte como o grande pote de ouro energético do país: 43% do potencial hidrelétrico nacional. No mapa das suas ambições estão bacias como as do rio Trombetas, no Pará, e do Jari, entre Pará e Amapá, além da do Sucunduri, no Amazonas. Um leitor mais atento notará que o mapa dessas regiões -ops!- se sobrepõe ao das zonas prioritárias para a conservação da biodiversidade. Daí a movimentação no governo para impedir a criação de unidades de conservação em áreas com potencial hidrelétrico.
Enxergar a Amazônia com os olhos da velha esquerda, como mera reserva de energia, minério e terras, é algo que já foi tentado pela velha direita (os militares). Não funcionou. Lula tem nas mãos, no seu segundo mandato, a oportunidade de dar a esse patrimônio um destino mais racional. Do contrário, continuará a ser assombrado por leis, ambientalistas, índios, quilombolas e Ministério Público.


CLAUDIO ANGELO é editor de Ciência.


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