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TENDÊNCIAS/DEBATES
Vão-se os sonhos, ficam os anéis
EDUARDO GRAEFF
Encarem a realidade: com todo o entusiasmo que proclamam pela Revolução Cubana, hoje o negócio de Lula e Dirceu é outro
"BURGUESIA burocrática" era
como o historiador Caio
Prado Jr. chamava o empresariado caudatário dos favores do Estado varguista.
Fernando Henrique Cardoso falou
em "anéis burocráticos" para se referir às relações especiais das grandes
empresas com a área econômica do
governo no tempo da ditadura. Delfim Netto foi senhor desses anéis,
agenciando negócios e distribuindo
proteção tarifária e subsídios como
todo-poderoso ministro da Fazenda
do general Médici.
Os americanos chamam "crony capitalism" a alavancagem de negócios
por relações pessoais e/ou troca de favores entre empresários e altos funcionários públicos. Eles depreciam
nesses termos quase todas as variedades de capitalismo que não vestem o
figurino liberal, do Japão à América
Latina, passando pelos tigres asiáticos e pela África. Não que os Estados
Unidos estejam livres da praga. Veja
as ligações empresariais do clã dos
Bush, para ficar num exemplo atual.
Tudo isso me vem à cabeça a propósito de duas notícias recentes: reportagem da revista "Piauí" sobre as andanças de consultor internacional do
ex-ministro José Dirceu; e a compra
da Brasil Telecom pela Telemar, acertada na expectativa de que um decreto de Lula virá legalizar a transação.
Foi Dirceu quem ligou uma coisa à
outra. Ele mencionou para a revista
uma conversa que teria tido com Lula
sobre os milhões investidos pela Telemar na firma de videogames do filho
do presidente. E citou entre seus
clientes o empresário mexicano Carlos Slim, cuja Telmex teria sido preterida na compra da Brasil Telecom.
Lula teria mandado Dirceu não
"encher o saco" com o tema da sorte
grande de Lulinha. Na certa se irritará
de novo se for questionado agora.
Chateação indelegável, já que precisam da assinatura dele no decreto que
beneficia quem beneficiou seu filho.
Chato mesmo é intuir que isso pode
não ser a exceção, mas uma nova regra nas relações do governo com
grandes empresas. Veja o que acontece no setor elétrico.
Questionado sobre sua trajetória
de revolucionário a consultor de empresas, Dirceu se queixou de que não
teve escolha após perder o mandato
de deputado e os direitos políticos.
Quem sabe ele está esperando a chuva passar, como na encarnação de negociante que teve no interior do Paraná. Quando o sol da revolução voltar a
brilhar no horizonte, ele pega um
avião para Havana ou Recife e pede
para o cirurgião: "Desfaz essa cara de
consultor e implanta aí uma barba".
Bizarro, mas improvável. Encarem
a realidade, companheiros e companheiras: com todo o entusiasmo que
proclamam pela Revolução Cubana,
hoje o negócio de Lula e Dirceu é outro. Em 2002, quando contrataram os
serviços de Marcos Valério e Duda
Mendonça, fizeram uma opção séria.
Seu mergulho no mundo dos negócios não é camuflagem passageira, é
para toda a vida. Só que o mundo dos
negócios que eles têm na cabeça não é
bem o capitalismo liberal. Não sei como eles mesmos chamariam. "Capitalismo dos bons companheiros"?
O sistema emergente pode não ter
nome, mas tem justificativa e modelo:
Coréia do Sul. Lá, o governo se lixa para a ortodoxia liberal. Intervém no
mercado, banca vencedores, subsidia
perdedores. A corrupção é grande, dizem. Mas o capitalismo coreano é um
sucesso de crescimento e inovação.
Esprema algum alto funcionário do
governo Lula metido em altas transações e ele pode sair com a mesma história de Dirceu na "Piauí": facilitar
negócios, abrir portas para investidores, é tudo pelo bem do Brasil. No caso
da telefonia, para criar megaempresa
nacional que faça frente às estrangeiras. Qualquer outro bônus é secundário perto da satisfação patriótica.
Não tenho fé no capitalismo liberal.
Nem sei bem por que o capitalismo
não liberal é um sucesso na Coréia,
um horror na África e, no Brasil de
Delfim Netto, foi do sucesso à crise
em dez anos.
Duas coisas eu sei. Primeiro, a concorrência faz bem ao capitalismo, sobretudo ao consumidor. O sucesso da
Coréia tem a ver, parece, com a capacidade que governo e grandes empresas tiveram de se organizarem para
concorrer no exterior. Lula poderia
assinar decreto para ajudar a Telemar
a se expandir... no México, por exemplo. E não detonar as regras de concorrência da telefonia brasileira -herança bendita do governo FHC.
Segundo, capitalismo não liberal
não combina com democracia. Pois
não se fia na estabilidade e impessoalidade das regras, mas em favorecimentos pessoais. E é muito arriscado
fazer investimentos de longo prazo
nessa base se pessoas e partidos no
governo mudam a cada quatro ou oito
anos. A não ser, talvez, se os negócios
alavancados gerarem dinheiro para
cooptar aliados, amaciar a imprensa,
comprar eleições etc. Mas aí não estamos falando de democracia, não é?
Não, pelo menos, da democracia
pela qual lutamos. Será que esse foi
outro sonho do qual os novos senhores dos anéis abriram mão?
EDUARDO GRAEFF, 58, é cientista político. Foi secretário-geral da Presidência da República no governo FHC.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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