São Paulo, quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

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A guerra equivocada

JOÃO CLAUDIO ROBUSTI

O Exército não deveria mobilizar 380 de seus combatentes para realizar as obras de transposição do rio São Francisco

O EXÉRCITO deveria fabricar brinquedos para crianças carentes? Negociar derivativos no mercado de futuros para proteger a produção dos pequenos agricultores do Nordeste? Produzir o computador popular? A resposta obviamente é não, pela boa e simples razão de que o Exército destina-se "à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem", como dispõe a Constituição Federal.
Logo, iniciativas como as sugeridas acima, por mais meritórias que sejam, não são atribuição da corporação militar. Da mesma forma, o Exército não deveria mobilizar 380 de seus combatentes para realizar as obras de transposição do rio São Francisco. Aqui, novamente, não está em causa o mérito do projeto sonhado por dom Pedro 2º para minorar os efeitos da seca, cuja realização se iniciou efetivamente em junho de 2007, mas ficou interrompido entre 14 de dezembro e 7 de janeiro devido ao recesso militar e a pendengas jurídicas.
Também não se trata aqui de discutir a legalidade da ação do Exército nem a greve de fome do bispo da cidade de Barra (BA), dom Luiz Flávio Cappio, contra o projeto. A questão é por que aquela corporação foi designada para construir barragens e canais que não fazem parte de suas atribuições, salvo se fosse para garantir a defesa do país ou da lei e da ordem.
O principal argumento invocado pelo governo federal para mobilizar a tropa foi uma alegada dificuldade em realizar a devida licitação pública diante da celeridade demandada pelo aflitivo quadro provocado pela seca.
Estranho. Se a licitação tivesse sido aberta no primeiro dia da gestão do primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, muito provavelmente a obra já estaria concluída.
O governo alega que as construtoras de obras públicas não se entendem e retardam os processos licitatórios com recursos administrativos e judiciais.
Nesse sentido, há dois graves equívocos. Primeiro, a função da licitação é justamente obter, pela ampla concorrência, a obra desejada pelo melhor binômio preço-qualidade que o mercado puder oferecer. Segundo, a contestação de decisões tomadas pelo Executivo ao longo da licitação, muitas vezes, tem o mérito de evitar um equívoco do Estado na contratação de obras que depois não venham a ser entregues, necessitem de pagamentos adicionais injustificáveis ou sejam desprovidas da qualidade requerida.
Ocorre que, em muitas licitações, as construtoras esbarram em obstáculos que retardam o início das obras. Para começar, ainda proliferam editais mal redigidos, fazendo exigências restritivas à ampla concorrência e vedadas pela lei 8.666, que regulamenta a matéria. Administradores públicos, muitos deles bem-intencionados, acabam cometendo equívocos por se cercarem de garantias excessivas. Outros, nem tanto, teimam em "dirigir" descaradamente os certames a empresas que querem beneficiar.
É certo que a Lei de Licitações pode e deve ser aperfeiçoada, num processo que está em discussão no Congresso. Mas a simples obediência aos dispositivos básicos da legislação em vigor está assegurando a execução de milhares de obras em todo o país. Por que o mesmo não ocorre com a transposição das águas do Velho Chico?
Quando o Executivo transgride a lei 8.666 e se nega a reconhecer o erro, o que resta à empresa que se julga apta a executar a obra da licitação da qual está sendo injustamente excluída? O recurso ao Poder Judiciário, que pode decidir rapidamente, concedendo liminares, mas também pode tardar meses, anos.
É por esse motivo, entre outros, que a construção civil clama, junto com a sociedade, por uma reforma da Justiça que acabe com a morosidade das decisões judiciais, que tanto prejudica a eficácia do Estado de Direito em que vivemos.
A realização de obras como as de transposição é indubitavelmente uma atribuição da iniciativa privada, o que traz as vantagens adicionais de geração de milhares de empregos, arrecadação de tributos e contribuições à Previdência e sustentabilidade do modelo econômico não estatizante que desejamos.
Poupemos o Exército de missões que a iniciativa privada pode perfeitamente realizar, preparemos melhor os administradores públicos responsáveis pelas licitações e façamos finalmente a reforma do Judiciário que este país merece.


JOÃO CLAUDIO ROBUSTI, 60, é presidente do SindusCon-SP (Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo), vice-presidente da CBIC (Câmara Brasileira da Indústria da Construção) e diretor de Habitação, Saneamento e Infra-Estrutura da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo).

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