São Paulo, terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Filhos que não darão ouvidos aos pais

MANOEL DE NÓBREGA


O uso descontrolado de fones de ouvido reduz o convívio social da criança em uma fase crucial para a construção da autoestima

A ORGANIZAÇÃO Mundial da Saúde estima que 42 milhões de pessoas acima de três anos de idade são portadoras de algum tipo de deficiência auditiva, de moderada a profunda. Ainda segundo números da OMS (1994) e do Censo 2000 realizado pelo IBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a deficiência auditiva no Brasil ocupa o terceiro lugar entre todas as deficiências do país, representando 16,7% do total da população que tem algum tipo de deficiência.
Esse dado chama a atenção se considerarmos que ele representa 3% da população do país. Mas ele se torna alarmante por sabermos que é possível identificar o risco de deficiência auditiva em um bebê quando ainda está no útero da mãe. Ademais, existem meios de tratar a deficiência com sucesso se for diagnosticada precocemente e se o trabalho de reabilitação iniciar-se antes dos seis meses.
Desde 1998, as maternidades mantidas pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) realizam a triagem auditiva em todos os recém-nascidos, com indicadores de risco ou não, para que o diagnóstico precoce desencadeie todo o processo de reabilitação. Mesmo assim, a surdez infantil é um problema que atinge de 3 a 5 crianças em cada 1.000 nascidas no país -e grande parte dos casos chega aos consultórios pediátricos depois do terceiro ano de idade, segundo a Sociedade Brasileira de Otologia, dificultando o tratamento.
Mas além das barreiras sociais e culturais para a prevenção dos problemas auditivos, o mundo moderno nos presenteia com o agravante da surdez induzida pelo ruído, sendo que os causadores de perdas auditivas mais comuns estão no nosso dia-a-dia, como a máquina de cortar grama, ou em momentos de celebração, como o estouro de foguetes ou a música tocada em volume alto.
As consequências dos novos hábitos, em especial nas crianças, serão foco de uma conferência durante a 66ª edição do curso Nestlé de Atualização em Pediatria, que reunirá, em São Paulo, no mês de março, pediatras do país inteiro em busca de qualificação e conhecimento.
A exposição a sons ou a barulhos acima dos limites de tolerância pode lesar a orelha interna -as células da cóclea- e causar uma surdez irreversível. De acordo com a OMS, 10% da população mundial tem algum tipo de deficiência auditiva. A OMS considera que a perda auditiva relacionada ao ruído musical é a segunda maior causa de surdez no mundo.
Uma pesquisa encomendada pelo governo australiano descobriu que 25% dos usuários frequentes de MP3 estão mais expostos a perdas de audição. Outra pesquisa, inglesa, identificou que jovens de 18 a 24 anos estão mais suscetíveis que os adultos a exceder o limite de volume ideal.
O Centro de Medicina da Universidade do Minnesota, nos Estados Unidos, desenvolveu um estudo sobre os efeitos do som dos shows de rock no aparelho auditivo e recomendou o uso de protetores auriculares -não só para crianças mas também para a família inteira. Em tempos de Carnaval, essa parece ser uma boa ideia.
Os adeptos de celulares, iPods e MP3 que os utilizam por várias horas enquanto desenvolvem outra atividade estão expostos à restrição do foco de alerta e atenção. Consequentemente, apresentam maior risco de se envolver ou produzir acidentes, como atropelamentos ou a não-audição de uma sirene de incêndio.
Em Nova York, por exemplo, desde 2007 atravessar a rua ouvindo iPod pode render uma multa de US$ 100.
O que pode parecer raro ou exagerado torna-se rotineiro e crucial em países como Israel, quando se trata de sirenes de foguetes, por exemplo.
Outro aspecto extremamente relevante e ainda pouco valorizado é que o uso descontrolado de fones de ouvido reduz o convívio social e familiar da criança em uma fase crucial para a construção e o fortalecimento da sua personalidade e da sua autoestima.
Uma escola de Sydney, na Austrália, proibiu o uso de MP3 alegando que o acessório leva ao isolamento dos alunos. Por uma visão pessimista -ou, quem sabe, realista-, poderíamos enxergar esse cenário como a segunda chance ou a tentativa de nossas crianças deixarem de escutar. Depois os pais não poderão reclamar de que seus filhos não lhe dão ouvidos.


MANOEL DE NÓBREGA , 46, médico especialista em otorrinolaringologia, mestre e doutor pela Universidade Federal de São Paulo, é professor afiliado do Departamento de Otorrinolaringologia da Unifesp. É responsável pelo Ambulatório de Deficiência Auditiva da Disciplina de Otorrinolaringologia Pediátrica da Unifesp/EPM.

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