São Paulo, Quarta-feira, 24 de Fevereiro de 1999
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O direito ao trabalho


O trabalhador deve sempre ter prioridade sobre o capital e o lucro. A economia deve estar a serviço do homem


CLÁUDIO HUMMES

O altíssimo índice de desemprego em nosso país deixa a sociedade apreensiva em relação ao futuro. O problema é grave e se agrava a cada dia. Mais e mais pessoas são demitidas de seus empregos, sem perspectiva de voltar ao trabalho tão cedo. Sua situação pessoal, familiar e social se deteriora.
Pois, na verdade, o desemprego humilha a pessoa, deprecia-a diante de si mesma, de sua família e de seu meio social. Impede-a de ganhar sua vida e a de seus dependentes com o fruto do seu próprio suor, torna-a dependente da ajuda dos outros, dá-lhe a impressão de ser inútil. Ameaça-a de rápido empobrecimento. Por isso, a situação a desanima e a revolta interiormente.
Assim, à medida que o número dos sem-trabalho sobe assustadoramente, o tecido social sofre e se debilita.
Por outro lado, o trabalho é um direito de cada ser humano, além de ser um dever. Reconhece-o a Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 23): "Todo homem tem direito ao trabalho, à livre escolha do emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego".
O trabalho, na verdade, caracteriza o homem diante dos demais seres deste mundo. Só o homem tem capacidade para trabalhar, no seu pleno sentido. Só o homem realiza trabalho e com ele preenche o melhor tempo de sua existência. Pode-se dizer que o homem é, por natureza, chamado ao trabalho.
Por isso, o trabalho é essencialmente uma bênção para o ser humano. Por ele, o homem desenvolve progressivamente todas as suas potencialidades, ganha o sustento para si e para seus dependentes, toma providências para seu futuro e economiza para emergências, como doenças ou novos empreendimentos. Colabora para o progresso da ciência, da tecnologia e da cultura.
O atual papa, em sua encíclica sobre o trabalho humano (1981), lembra com razão que o capital, entendido como o conjunto dos meios de produção, é produto do trabalho manual e intelectual de muitas gerações. Isso significa que cada máquina, com todas as sofisticações da tecnologia de ponta, representa a soma do trabalho de gerações anteriores e da geração atual. De modo que ninguém pode simplesmente declarar-se proprietário absoluto dessa máquina, pretendendo usufruí-la sem obrigações sociais -ela pertence, em sua raiz, à comunidade humana.
Aquele que é desempregado sente-se excluído de todo esse processo produtivo, histórico e comunitário, altamente dignificante da pessoa humana. O desemprego torna-se desumanizante.
Diante do agravamento do problema, a CNBB decidiu dedicar a Campanha da Fraternidade de 99 ao desemprego. Seu lema ("Sem trabalho... Por quê?") é o grito de cada brasileiro demitido de seu emprego. A Igreja Católica ouve esse grito, que ecoa fundo -são pessoas humanas que se sentem jogadas fora, à margem-, e entra nesse problema. Como já declarava o Concílio Vaticano 2º (GS, 1): "As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo". Mais: "A comunidade cristã sente-se verdadeiramente solidária com o gênero humano e com sua história".
João Paulo 2º, na sua primeira encíclica, "O Redentor do Homem", retoma esse tema, quando afirma: "O homem é a primeira e fundamental via da igreja". Isso significa que a igreja não pode deixar de ser solidária com a pessoa humana. Essa atitude dos cristãos se baseia no fato de o Filho de Deus ter-se feito homem em Jesus Cristo, dando à natureza humana uma dignidade que inclui e mesmo supera o que a razão percebe da inviolável e incomparável dignidade da pessoa humana.
Por essas razões, a igreja sempre proclama o primado da pessoa humana sobre as coisas. Nisso está a base de sua compreensão ética no que tange ao homem e ao convívio humano na história. É nessa chave que se entende a defesa pela igreja do "princípio da prioridade do trabalho em confronto com o capital", tese que se encontra na encíclica de João Paulo 2º sobre o trabalho humano. Aqui trabalho significa, concretamente, o homem trabalhador. Portanto, o trabalhador deve sempre ter prioridade sobre o capital, o lucro, a acumulação de riquezas. A economia deve estar a serviço do homem.
Tornar isso realidade é, hoje, sempre mais complexo e difícil. Empurrar a responsabilidade pelo desemprego sobre este ou aquele setor não é justo nem traz soluções sábias. Toda a sociedade é responsável por essa situação. Obviamente, aqueles que têm maior poder político, social e econômico são os principais responsáveis, mas a sociedade inteira precisa assumir sua parte.
Além do mais, sabemos que o desemprego hoje cresce em todo o mundo, tendo como uma de suas causas maiores a nova ordem econômica mundial, globalizada e de corte neoliberal -que, por acréscimo, expõe em demasia a economia dos países à fome irresponsável de lucro do capital financeiro e especulativo internacional.
A igreja, com sua Campanha da Fraternidade, quer contribuir para a reflexão sobre esse complexo assunto e para a busca de soluções viáveis, tanto emergenciais como estruturais, seja em nível local, seja nacionalmente.


D. Cláudio Hummes, 64, é arcebispo de São Paulo. Foi arcebispo de Fortaleza (CE) e bispo de Santo André (SP).



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