São Paulo, Quarta-feira, 24 de Fevereiro de 1999
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Por uma nova atitude política


O presidente sabe da enrascada em que está; sabe como passará à história se mantiver as opções que tem feito


MARTA SUPLICY

No começo de fevereiro, fui a Haia (Holanda) para passar meu cargo de presidente do Grupo Parlamentar Interamericano. Lá se reuniram 213 parlamentares, de 103 países, para avaliar os resultados obtidos após cinco anos da convenção do Cairo, na qual conseguimos grandes avanços em relação aos direitos reprodutivos, com os quais nosso país se comprometeu.
Saí do Brasil extremamente preocupada. Corriam boatos de toda sorte; para espanto geral, acabara de ser nomeado para presidir o Banco Central nada menos que um alto funcionário do megainvestidor Soros. Na sala de espera do vôo, troco algumas palavras com um ex-presidente da Fiesp, empolgadíssimo com a escolha: "Finalmente alguém que entende de mercado!".
O que o entusiasmava era exatamente o que me inquietava. Na minha cabeça, passavam coisas como "nós não somos um cassino. Por que a escolha de um craque da Bolsa?". Está bem, o BC tem de ser o guardião da moeda. Mas não pode ser com uma cabeça que pense que só isso basta. Tem de ser alguém preocupado com nossa população, desprovida de tudo. Que entenda a maluquice do mercado de capitais, mas se preocupe com as questões sociais; que tenha interesse pelo Brasil inteiro.
Eu queria um presidente do BC que não fosse só um operador do mercado, mas tivesse em mente uma política de desenvolvimento a ser seguida. Essa política não pode ser criação dele: tem de ser do governo, principalmente do presidente. Daí a minha preocupação.
FHC errou feio no primeiro mandato, priorizando, no Congresso, sua reeleição, em vez do ajuste na economia e das reformas. Ao optar pela alta dos juros, sabia que punha freios à produção e que nos levaria à recessão. Como psicóloga e observadora cuidadosa dos movimentos políticos, eu me preocupo ao ver que hoje eles são determinados pela economia -e não o contrário.
Concluo que pouca coisa muda com Armínio Fraga. Sendo um executivo muito bem-sucedido, deve ser ágil, criativo, decidido, perspicaz. Mas serão só essas as qualidades necessárias para a gestão da moeda? As regras do "melhor negócio" levarão nosso país a se transformar numa nação justa?
Uma vez que a autoridade monetária define a oferta da moeda, a política cambial e os juros, suas decisões afetam os empregos e os rendimentos de todos. Será Fraga, que geria os fundos de Soros visando a maior rentabilidade, capaz de ter outro olhar, que privilegie a promoção das oportunidades de emprego e a melhor distribuição da renda, considerando-as tão importantes quanto a estabilidade dos preços? Seu perfil indica que o presidente não mudou os caminhos que tem escolhido.
Não vejo, até agora, muitas possibilidades de transformação para os mais pobres nem boas perspectivas de emprego para os filhos da classe média. O Brasil é um país de uma riqueza imensa. Por que não investir prioritariamente em nós? Por que não colocar em primeiro plano os objetivos expressos pela Campanha da Fraternidade e assegurar a todos o direito a um emprego?
Uma atitude muito mais radical tem de ser corajosamente pensada -não sei se a moratória (o que Celso Furtado diz que ocorrerá, queira FHC ou não). Se para fazer maciços investimentos sociais e em educação for preciso mudar toda a política econômica, por que não fazê-lo civilizadamente, o quanto antes? As consequências seriam gravíssimas? Mas o preço atual já não está além do que é ético para o ser humano?
Cresce o apoio ao perdão das dívidas dos países mais pobres no ano 2000. O Brasil não entra nessa conta; mas no mundo todo o questionamento dessas dívidas, em face da pobreza que elas geram, está só começando. A CNBB tem batido nessa tecla com grande discernimento. Não dá mais para deixar milhões de desempregados e miseráveis esperando a boa vontade do capital globalizado, à mercê da jogatina internacional ou aguardando que cresça um bolo que, para eles, nunca cresce.
Essas idéias foram tomando corpo à medida que eu participava da reunião na Holanda. Foram muito poucos os avanços nos cinco anos pós-Cairo. É claro que os cortes orçamentários nos países em desenvolvimento (nas áreas sociais, de educação e de direitos reprodutivos) estavam ligados ao pagamento de suas dívidas estratosféricas. Fica-se num vaivém que indica que nada mudará nas próximas décadas sem que os países em desenvolvimento tomem alguma atitude política diferente.
O presidente, que já participou de muitas reuniões desse tipo, sabe da enrascada em que está; sabe também como passará à história se mantiver as opções que tem feito. Terá coragem de, como disse Serjão, "não se apequenar"? Enquanto ele decide, cabe às oposições aprofundar uma proposta que dê esperanças à próxima geração e permita ao futuro começar já, por mais penosa que possa ser a travessia.


Marta Suplicy, 53, psicanalista, é ex-deputada federal pelo PT de São Paulo. Foi candidata ao governo do Estado pelo partido em 1998. E-mail: msuplicy@solar.com.br



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