São Paulo, segunda-feira, 24 de maio de 2004

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JOSÉ SERRA

O avesso do avesso

Ao contrário do que parece, a política exterior do Brasil durante o atual governo não trouxe inovações substantivas, noves fora aspectos retóricos ou publicitários. A grande linha de continuidade em relação ao governo anterior se evidencia nas negociações financeiras e comerciais.
Manteve-se, por exemplo, a política de boas relações com o Fundo Monetário Internacional ou, mais amplamente, com o chamado Consenso de Washington. Se alguma diferença existiu, foi na direção da maior proximidade, haja vista, por exemplo, a ampliação das metas de superávit primário para além do nível requerido pelo Fundo.
As batalhas na Organização Mundial do Comércio seguem o padrão anterior. Ontem, como hoje, há competência nessa matéria, observada em Cancún e na punição aos Estados Unidos pela discriminação contra as importações de algodão, batalha iniciada na gestão do chanceler Celso Lafer.
Em relação à Alca, as diferenças não são marcantes, até porque, se as negociações não prosperaram, não foi porque o Brasil resistiu -não teria força para tanto-, mas devido ao ano eleitoral nos Estados Unidos e ao conseqüente recrudescimento do sentimento protecionista nesse país.
Em relação à União Européia, não há mudanças na estratégia brasileira. E, ao contrário do folclore, a UE é tão ou mais resistente a abrir seu comércio do que os Estados Unidos. Isso será mais verdadeiro ainda depois do ingresso no clube econômico europeu de dez países do leste do continente.
Uma inovação necessária não foi feita: a multiplicação de acordos bilaterais de comércio pelo mundo afora. São acordos em que o Brasil trocaria concessões com outros países -como reduções tarifárias. As possibilidades seriam enormes face ao volume absoluto e à diversificação de nosso comércio exterior. Apesar disso, temos menos acordos desse tipo do que o Chile, sem falar no México. Faltam agressividade e concentração de esforços, além das dificuldades criadas pelo Mercosul. Na forma em que essa associação foi (mal) feita, só podemos concluir acordos se a Argentina, o Uruguai e o Paraguai forem juntos. Isso torna as negociações mais lentas e penosa.
Aliás, o atual governo não inovou no Mercosul. A reunião do fim de ano em Montevidéu, exibida como um grande êxito, trouxe retrocessos, aprovando-se decisões na contramão de uma integração comercial séria, como a diminuição do conteúdo nacional das exportações paraguaias para a região.
Entre as possíveis inovações, não cabe o exemplo das críticas à invasão do Iraque, pois até o Chile e o México, mais dependentes dos Estados Unidos, manifestaram seu desagrado. Nem merece realce a política em relação à Venezuela. Num primeiro momento, o aparente papel de redentor do presidente Chávez, assumido pelo governo brasileiro, criou grande descontentamento na oposição venezuelana. Mais tarde, o recuo do governo Lula desagradou a Chávez. Não ficamos bem dos dois lados.
Por último, teremos a inovação de uma reunião entre os países da Liga Árabe e da América Latina no fim deste ano -tão sem propósito que nem o Itamaraty, com seus competentes e imaginativos funcionários, sabe explicar do que se trata. Se não for cancelada, seu resultado prático, como dois e dois são quatro, será inferior ou igual a zero.


José Serra escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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