São Paulo, quinta-feira, 24 de maio de 2007

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KENNETH MAXWELL

O papa e a rainha

COISAS ESTRANHAS costumam acontecer com a história durante visitas de Estado. Na semana em que o papa Bento 16 esteve no Brasil, a rainha Elizabeth 2ª da Inglaterra visitou os Estados Unidos. No Brasil, o papa canonizou um religioso brasileiro do final do século 18 que inventou pílulas miraculosas, enquanto nos Estados Unidos a rainha canonizou Jamestown, uma colônia inglesa estabelecida no século 17, como o local de nascimento da democracia norte-americana. Ambos alegaram que a colonização foi uma bênção.
O papa negou que tenha sido "a imposição de uma cultura estranha", enquanto a rainha exaltava os "valores eternos de democracia e igualdade" de Jamestown, que se baseavam "no domínio da lei e na promoção da liberdade".
Caso o papa tivesse ido a Chiapas (México) para pregar na igreja fundada em San Cristóbal pelo frei Bartolomé de Las Casas, talvez sentisse a necessidade de confrontar uma realidade diferente. Las Casas não tinha dúvidas de que a chegada dos cristãos à América havia causado "a destruição das Índias", literalmente levando pragas e morte a milhões dos habitantes indígenas da região. E a rainha parece ter se esquecido de que a sobrevivência de Jamestown dependia de escravos, de tabaco e de um governo ditatorial.
Talvez Elizabeth 2ª tenha optado por falar sobre democracia para não ter de falar sobre republicanismo, que era evidentemente o que os inimigos de seu ancestral George 3º teriam preferido. Os pais fundadores da República norte-americana, de fato, não se sentiam muito confortáveis com democracia demasiada, e desenvolveram um sistema de governo que restringisse o poder popular. Há certa ironia no fato de que, enquanto George Bush 2º, um homem muito dinástico, educado em Yale e em Harvard, estava recebendo a rainha em jantar formal na Casa Branca, no Brasil tenha sido o presidente sem educação superior que optou por falar com franqueza.
Lula lembrou a Bento 16 que o povo brasileiro respeita a separação entre igreja e Estado, especialmente no que tange a um reconhecimento público franco das realidades da sexualidade humana, como a distribuição de camisinhas para impedir a transmissão do vírus HIV. Lula perdeu mulher e filho devido a assistência médica inadequada e, em questões instintivas de vida, morte e história, ele muitas vezes está certo, enquanto rainhas e papas podem, em certas ocasiões, demonstrar notável propensão ao erro.


KENNETH MAXWELL escreve às quintas-feiras nesta coluna.
kmaxwell@fas.harvard.edu

Tradução de Paulo Migliacci


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