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TENDÊNCIAS/DEBATES
Autonomia universitária ameaçada
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
A autonomia universitária é ameaçada, antes, por esses focos de irracionalidade que a impedem de pensar e esboçar projeto de reforma
A CADA dia as universidades estaduais paulistas perdem um
pedaço de sua autonomia. Pois
esta configura, antes de tudo, um dos
meios mais eficazes para cumprir o
mandato -que o Estado e a sociedade
paulista lhes conferiram- para realizar, da melhor forma possível, pesquisa, ensino e extensão em nível superior. Quando a universidade passa
sistematicamente a solapar uma de
suas tarefas, deixa de cumprir esse
mandato, pondo em risco a autonomia duramente conquistada.
Até quando se pode admitir que
uma instituição pública passe a girar
em falso a seu bel-prazer?
Nos últimos anos, a cada mês de
maio, alguns de seus institutos ou algumas de suas categorias entram em
greve. Não é toda a universidade que
pára, pois muitas escolas continuam a
manter a rotina dos trabalhos.
No entanto, nas mais "letradas",
uma vez os professores, outra, os alunos e, por fim, os funcionários iniciam o movimento. Tomam em geral
como bandeira reivindicações salariais, as mais justas, pois, na média, os
salários do pessoal universitário estão incrivelmente baixos.
Costuma-se exigir um aumento da
cota de 9,57% da arrecadação do
ICMS, recursos a serem geridos pelos
próprios universitários, sem que se
examine se tal aumento cabe na organização racional e democrática do Orçamento ou se simplesmente vem aumentar privilégios de classes já altamente privilegiadas.
Basta passar os olhos nas demais
reivindicações dos estudantes, como
a residência indefinida nas moradias
instaladas nos campi, para que se perceba o caráter nitidamente pequeno-burguês do movimento.
No que concerne aos salários, salvo
engano meu, desconheço uma proposta séria de reestruturação do Orçamento que venha compensar o perverso sistema de aposentadoria de
professores e funcionários. Este já
criou, só na USP, um rombo de quase
30% dos recursos que lhe cabem.
Ora, desde o momento em que a autonomia foi negociada, sabia-se que a
universidade só poderia ter equilíbrio
financeiro se fosse criado um fundo
de pensão que aliviasse a folha de pagamento. Mas ninguém tem anuído
em pagar esse custo. Confundem-se
verbas com maná que cai do céu.
Neste ano, a reivindicação maior é
anular os decretos do governador José Serra que, entre outras medidas,
criam a Secretaria de Ensino Superior e subordinam a ela as três universidades. Estas sempre estiveram ligadas a esta ou àquela secretaria, mas,
como a redação dos decretos é confusa, tem havido margem a toda sorte
de mal-entendidos. O governo vem
sistematicamente tentando explicar
os pontos obscuros, a ponto de os três
reitores já terem declarado que não
vêem nenhum bicho-papão pronto a
devorar a autonomia universitária.
Se ainda restam tensões, por que
não negociar uma nova redação dos
decretos? Por que os ilustres reitores
não encaminham uma proposta viável que nos retire do impasse?
Mas a greve não termina porque foi
absorvida pelos delírios de maio, por
esse verme que corrói os intestinos de
vários institutos, a fim de que a normalidade do ano letivo seja deturpada
e o programa das reivindicações políticas se descole do real, crie fantasmas que possam colaborar com outros fantasmas políticos de que a sociedade brasileira está cheia.
Aliás, ela corre no mesmo sentido
da desestruturação completa de nossos aparelhos de Estado, mergulhados no abismo enquanto a economia
nacional se alinhava sem eles.
Agora, por volta de 250 professores,
dentre aproximadamente 5.000, decidem que também o corpo docente
da USP entra em greve. Além da defesa da autonomia ameaçada, há uma
série de novas reivindicações. Alguma
negociação a esse respeito já foi tentada? Ou os professores, amuados,
avisam que param de brincar?
No fundo, reside um projeto político antidemocrático que ensina alunos, funcionários e professores a desobedecer toda ordem constituída, a
não cumprir contratos, a não ter responsabilidade pelo trabalho que deveriam estar desenvolvendo.
Tudo isso sem risco, pois, não tendo
sido o direito de greve até agora regulamentado, os salários continuarão
sendo pagos. Por sua vez, as aulas perdidas serão repostas, como se um ano
letivo truncado pudesse ser refeito
em poucos dias e muito pouco trabalho. Mantém-se apenas a tradição de
fazer de conta que se trabalha, e se reforça o hábito da impunidade.
De fato, tudo me leva a crer que a
autonomia universitária está sendo
ameaçada, mas, antes de tudo, por esses focos de irracionalidade interna
que impedem que a universidade se
pense a si mesma e esboce o projeto
urgente de sua reforma.
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI, filósofo, é professor emérito
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento). É autor de, entre
outras obras, "Certa Herança Marxista" (Cia. das Letras).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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