|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Regressão e anúncio em Bento 16
CANDIDO MENDES
O que é a reafirmação da fé diante do quadro objetivo de negação do homem que hoje os próprios países de cristandade entremostram?
A ALOCUÇÃO de Bento 16 ao
episcopado latino-americano
não se omitiu, na espera pelo
cerne do recado da igreja para o nosso
tempo: o que é a reafirmação da fé
diante do quadro objetivo de negação
do homem que entremostram hoje os
próprios países de cristandade?
O papa tornou claras as condições
esperadas para essa ação evangélica.
Abriu-se à temática da inculturação,
numa perspectiva não só de revalorizar os fundamentalismos indígenas, à
exigência de verdadeiras sínteses, no
reconhecimento dos seus distintos
conteúdos identitários pré-tempos
coloniais. Não perdeu tempo na visão
prospectiva, tomando partido nos
reptos da globalização, para um mais-ser do homem no continente.
Ratzinger não ficou na repetição da
exigência do desenvolvimento harmônico nem da expectativa de que este pudesse espelhar uma identidade
católica. Veio ao foco das contradições objetivas do social, afirmando a
exigência de um futuro democrático e
criticando as formas remanescentes
de governo autoritário entre nós.
Chegou à denúncia contundente do
modelo da economia liberal, referindo-se à enorme pobreza e à extraordinária concentração da riqueza no
mundo contemporâneo. E, de imediato, situou-se no nervo do problema, tomando posição sobre a superação de tal quadro fora dos idealismos
fáceis ou mesmo das visões ingênuas
da mudança. Refere-se à luta por estruturas sociais justas. Mas repete
que são insuficientes enquanto não
incorporarem a palavra e o ensino da
igreja. À sua falta esta solução é apenas mais uma ideologia.
Mas até onde -exatamente a bem
da complexidade do nosso tempo- o
recurso à mensagem da fé e à doutrina não são aditivos, mas componentes dessa situação, sob pena de uma
visão liricamente transformadora do
nosso tempo tão-só pela catequese ou
pela inefável boa vontade cristã?
A ação da consciência é a de uma remissão constante à totalidade. Nesta
sociedade, tudo conta ao mesmo tempo e não há alavancas salvadoras. O
empenho da libertação -implícito ou
não na doutrina social- exige o seu
anúncio como esperança concreta,
independentemente da pressa em se
tornar teologia ou conviver com outras visões do processo histórico, lugar do cristão na sua procura salvífica.
Superando toda visão fundamentalista de cristandade, abrindo-se à hermenêutica moderna do contraponto
entre a racionalidade e a leitura do
real, o papa impôs uma toma de palavra prospectiva pelo episcopado.
Reconhecendo o quanto se modificaram e se ampliaram os desafios do
encontro de Santo Domingo, depara-se o imperativo da denúncia, como estrutural, da injustiça no continente. A
ficarmos nas meias frases ou na chamada emoliente à caridade, o próximo encontro deparará o mundo das
hegemonias por sobre as dominações,
do estranhamento do outro pela marginalização radical e do perigo do universo mediático da troca da verdade
pela indução de seus simulacros. Voltaremos à fase de Puebla e Medellín
ou regrediremos aos termos suasórios da última conferência no Caribe?
O horizonte da secularização impõe o discernimento da larguíssima
perspectiva que leva a palavra do pontificado, ao lado da defesa da vida, a
toda exigência do processo histórico
de nossos dias ante a civilização do
medo ou do terrorismo em impasses
específicos do século 21.
O avanço da teoria da inculturação
que promete Bento 16 impõe o papel
único da igreja de dissociar os valores
evangélicos do que seja o mundo hegemônico, e não mais da velha dominação colonial. E no seio do quadro
apocalíptico do neoconservadorismo
americano como guerreiro e salvador
da religião do Ocidente.
Que ações afirmativas na fronteira
iminente e explosiva do conflito podem dar testemunho da igreja no outro verso do missionarismo tradicional ao desarme do confronto e reencontro da convivência pluralista da
humanidade? Não se trata de batizar
a secularização, muito menos ignorá-la, tal como se um anúncio renovado
precisasse retornar às catacumbas.
O entendimento da palavra encarnada à luz dos sinais dos tempos abre
caminho no novo século, fadado, talvez, sem quartel, à guerra de religiões.
Diante do esplendor da recepção no
Brasil, é difícil que este pontificado
tenha consagração igual nos próximos anos. Mas nos deixou à mingua,
ainda, do que seja o profetismo a nossos ouvidos e nossos "olhos de ver",
em que a fé de todos cada vez mais se
realiza na esperança de cada um.
CANDIDO MENDES, 78, membro da Academia Brasileira
de Letras, é presidente do "senior Board" do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco (Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).
Foi membro brasileiro da Comissão Pontifícia de Justiça e
Paz por 12 anos e secretário-geral da Comissão Brasileira
de Justiça e Paz (1969 a 1995).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES José Arthur Giannotti: Autonomia universitária ameaçada Próximo Texto: Painel do Leitor Índice
|