São Paulo, quinta-feira, 24 de maio de 2007

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Regressão e anúncio em Bento 16

CANDIDO MENDES

O que é a reafirmação da fé diante do quadro objetivo de negação do homem que hoje os próprios países de cristandade entremostram?

A ALOCUÇÃO de Bento 16 ao episcopado latino-americano não se omitiu, na espera pelo cerne do recado da igreja para o nosso tempo: o que é a reafirmação da fé diante do quadro objetivo de negação do homem que entremostram hoje os próprios países de cristandade?
O papa tornou claras as condições esperadas para essa ação evangélica.
Abriu-se à temática da inculturação, numa perspectiva não só de revalorizar os fundamentalismos indígenas, à exigência de verdadeiras sínteses, no reconhecimento dos seus distintos conteúdos identitários pré-tempos coloniais. Não perdeu tempo na visão prospectiva, tomando partido nos reptos da globalização, para um mais-ser do homem no continente.
Ratzinger não ficou na repetição da exigência do desenvolvimento harmônico nem da expectativa de que este pudesse espelhar uma identidade católica. Veio ao foco das contradições objetivas do social, afirmando a exigência de um futuro democrático e criticando as formas remanescentes de governo autoritário entre nós.
Chegou à denúncia contundente do modelo da economia liberal, referindo-se à enorme pobreza e à extraordinária concentração da riqueza no mundo contemporâneo. E, de imediato, situou-se no nervo do problema, tomando posição sobre a superação de tal quadro fora dos idealismos fáceis ou mesmo das visões ingênuas da mudança. Refere-se à luta por estruturas sociais justas. Mas repete que são insuficientes enquanto não incorporarem a palavra e o ensino da igreja. À sua falta esta solução é apenas mais uma ideologia.
Mas até onde -exatamente a bem da complexidade do nosso tempo- o recurso à mensagem da fé e à doutrina não são aditivos, mas componentes dessa situação, sob pena de uma visão liricamente transformadora do nosso tempo tão-só pela catequese ou pela inefável boa vontade cristã?
A ação da consciência é a de uma remissão constante à totalidade. Nesta sociedade, tudo conta ao mesmo tempo e não há alavancas salvadoras. O empenho da libertação -implícito ou não na doutrina social- exige o seu anúncio como esperança concreta, independentemente da pressa em se tornar teologia ou conviver com outras visões do processo histórico, lugar do cristão na sua procura salvífica.
Superando toda visão fundamentalista de cristandade, abrindo-se à hermenêutica moderna do contraponto entre a racionalidade e a leitura do real, o papa impôs uma toma de palavra prospectiva pelo episcopado.
Reconhecendo o quanto se modificaram e se ampliaram os desafios do encontro de Santo Domingo, depara-se o imperativo da denúncia, como estrutural, da injustiça no continente. A ficarmos nas meias frases ou na chamada emoliente à caridade, o próximo encontro deparará o mundo das hegemonias por sobre as dominações, do estranhamento do outro pela marginalização radical e do perigo do universo mediático da troca da verdade pela indução de seus simulacros. Voltaremos à fase de Puebla e Medellín ou regrediremos aos termos suasórios da última conferência no Caribe?
O horizonte da secularização impõe o discernimento da larguíssima perspectiva que leva a palavra do pontificado, ao lado da defesa da vida, a toda exigência do processo histórico de nossos dias ante a civilização do medo ou do terrorismo em impasses específicos do século 21.
O avanço da teoria da inculturação que promete Bento 16 impõe o papel único da igreja de dissociar os valores evangélicos do que seja o mundo hegemônico, e não mais da velha dominação colonial. E no seio do quadro apocalíptico do neoconservadorismo americano como guerreiro e salvador da religião do Ocidente.
Que ações afirmativas na fronteira iminente e explosiva do conflito podem dar testemunho da igreja no outro verso do missionarismo tradicional ao desarme do confronto e reencontro da convivência pluralista da humanidade? Não se trata de batizar a secularização, muito menos ignorá-la, tal como se um anúncio renovado precisasse retornar às catacumbas.
O entendimento da palavra encarnada à luz dos sinais dos tempos abre caminho no novo século, fadado, talvez, sem quartel, à guerra de religiões. Diante do esplendor da recepção no Brasil, é difícil que este pontificado tenha consagração igual nos próximos anos. Mas nos deixou à mingua, ainda, do que seja o profetismo a nossos ouvidos e nossos "olhos de ver", em que a fé de todos cada vez mais se realiza na esperança de cada um.


CANDIDO MENDES, 78, membro da Academia Brasileira de Letras, é presidente do "senior Board" do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). Foi membro brasileiro da Comissão Pontifícia de Justiça e Paz por 12 anos e secretário-geral da Comissão Brasileira de Justiça e Paz (1969 a 1995).

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