São Paulo, segunda-feira, 24 de junho de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A falsificação liberal-democrática



Como conciliar democracia, no contexto das bases da nossa cultura, com o sentido profundo do liberalismo?


JORGE BOAVENTURA

Permita-nos o leitor entrar diretamente no assunto: uma coisa é a democracia, como ideal. Outra, diferente, são as formas e os mecanismos institucionais postos em ação para atingi-la.
Como ideal, ela significa o desejo da criatura humana, o "animal político" a que se referiu Aristóteles, de implementar superestruturas político-administrativas, o mais e o melhor possível aptas a proteger, a defender e, quando necessário, a promover os interesses justos e as aspirações legítimas daqueles que irão viver sob a sua jurisdição. Entendida assim, ela representa ideal insubstituível e eterno, de validade universal, de vez que, sendo os homens seres racionais, não tem sentido que se ocupem com estabelecer superestruturas que os prejudiquem e oprimam injustamente.
Repare o leitor, porém, que, quando nos referimos a aspirações e interesses justos e legítimos, fica indisfarçavelmente estabelecida a necessidade da existência de um referencial axiológico permanente, capaz de distinguir entre o justo e o injusto, o legítimo e o ilegítimo.
Na cultura de que brotou e onde se desenvolveu a civilização a que pertencemos, certa ou erradamente, é factualmente indiscutível que o citado referencial consiste na consideração da existência do direito natural, por sua vez consequente à hipótese da existência de um criador, fora da ordem física, cuja vontade se reflete na ordem do universo que ele teria criado e sustém e do qual somos parte.
O direito natural, assim, não substitui o direito positivo, mas deve emoldurá-lo, de modo que este não venha a se opor a ele e de modo que não venha a ser perturbada, em seus fundamentos, a ordem natural das coisas, tão suficientemente evidente na harmonia em que funciona o universo.
Isto dito, de maneira extremamente resumida, acreditamos que a falsificação a que se refere o título deste artigo consiste na contradição entre os significados profundos do ideal democrático, com suas exigências de distinção entre o justo e o injusto, entre o legítimo e o ilegítimo, e o liberalismo que, no domínio da filosofia, revela sua significação essencial como expressão de naturalismo agnóstico. Isto é, como uma disposição de circunscrever toda a realidade ao domínio natural, abstendo-se de quaisquer cogitações sobre se, além dele, algo existe ou não a ser considerado.
Ora, as preocupações do homem em relação a respostas a indagações sobre o que ele é, de onde proveio, para onde irá, caso exista algo além da vida de que desfruta, são tão antigas quanto a própria humanidade, estando presentes, como o assinalou o papa atual em sua recente encíclica "Fides et Ratio", já no dintel da porta do templo de Delfos, "homem, conhece-te a ti mesmo", figurando nos ensinamentos sábios de Israel, como nos de Tirtankara, como nos antiquíssimos do Zend-Avestà, como nos de Sidartha Gautama, o Buda, como em outros ensinamentos, antigos e atuais.
Acredita, então, o leitor isento, no mais íntimo de sua consciência, que tenha existido ou que exista hoje alguma sociedade na qual a maioria dos integrantes se componha de agnósticos? Então, como conciliar democracia, dentro do contexto das bases da nossa cultura, com o sentido profundo do liberalismo?
De onde terá vindo o equívoco que ensejou a confusão deliberadamente estabelecida entre o ideal democrático e as formas e mecanismos institucionais visivelmente viciados e corrompidos, que o degradam e espalham pelo mundo o quadro deprimente de desagregação e de ruína -do ponto de vista das nossas origens culturais- a que estamos assistindo? De injustiças e violências inenarráveis, como, por exemplo, ocorrem na África subsaárica, vitimada pela fome, pela Aids e por múltiplos conflitos armados, que têm feito milhões de vítimas sem que nenhum dos litigantes produza as armas com que se dizimam. Quem lhas fornece e ensina a usá-las? Não serão, principalmente, as "grandes democracias" do chamado Primeiro Mundo?
A resposta, segundo pensamos e submetemos à consideração da inteligência e da consciência do leitor, podemos encontrar no artigo 6º da "Declaração Universal dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos", promulgada em 1791 pela Assembléia Nacional Francesa, no qual se estabelecia: "A lei é a expressão da vontade geral, manifestada diretamente ou por intermédio de representantes".
Em outros artigos, ficou também estabelecido que "ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer qualquer coisa, a não ser em virtude de lei". E tudo, à primeira vista, parece justo e perfeito.
Na verdade, porém, o que se estava fazendo era desvincular e erradicar o processo civilizatório do Ocidente de suas bases culturais, privando-o do referencial fixo a que já nos reportamos e deixando tudo a critério dos legisladores, por intermédio de maiorias eventuais e volúveis, e reduzindo todo o direito ao direito positivo. E isso é, evidentemente, contrário às bases da cultura de que proveio a nossa civilização.
Dali para diante, quem tivesse a capacidade de garantir as maiorias eventuais a que nos referimos, conduziria a seu bel-prazer o processo civilizatório. Os resultados aí estão diante dos olhos de todos. O assunto é extremamente grave e o espaço, limitado. Voltaremos, pois, a eles, se Deus quiser.

Jorge Boaventura de Souza e Silva, 80, ensaísta e escritor, é conselheiro do Comando da Escola Superior de Guerra.

Site: www.jorgeboaventura.jor.br
E-mail: brasil@jorgeboaventura.jor.br


Texto Anterior:
TENDÊNCIAS/DEBATES
Milú Villela: Somos todos responsáveis

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.