São Paulo, quinta, 24 de julho de 1997.



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Contra a irresponsabilidade política

Vicentinho e os setores por ele capitaneados operam na greve policial como pescadores de águas turvas


ROBERTO ROMANO

Convidado para um seminário em Brasília, tomei o avião e sentei-me na poltrona do corredor. Lia os jornais diários quando surgiu o famoso Vicentinho, ocupando o lugar ao meu lado. Aborrecido com o personagem, que rifou os professores nas "negociações" sobre a previdência, desestimulei o bate-papo. O moço se virou para o passageiro da janela e começou a parolagem.
As trivialidades foram substituídas, a partir de certo momento, pelo malho na imprensa. "Os jornais distorcem tudo o que digo e faço", suspirava o líder da CUT. Até o aeroporto, os lamentos sobre a "perseguição" dos jornalistas seguiram num crescendo. Disse para mim: "Ele vai se desmanchar em salamaleques para a mídia, no desembarque". Bingo! Notando as máquinas fotográficas, o chorão de instantes atrás abriu um sorriso quilométrico: mergulhou, feliz, nas águas da publicidade.
Duas pessoas, dois rostos, duas falas. Dirigi-me aos petistas que me recebiam, ironizando a metamorfose. Risos amarelos acolheram minhas observações. O manejo era evidente. Mas...
Estamos cansados de lideranças que assumem certas atitudes sem pesar as consequências. Vicente Paulo da Silva cuida muito de sua carreira política e prepara, há bom tempo, uma candidatura ao Parlamento. Nada contra, pois ele estuda para estar à altura dos futuros compromissos.
Se usa o sindicalismo como escada, isso não é original. Universitários também aproveitam os campi para escalar a montanha política, usando linguagem "double face": de oposição, quando fora dos governos; "realistas", ao se pilharem nos gabinetes poderosos. Sentido de oportunidade e demagogia andam juntos. Onde se encontram os limites éticos desse conúbio entre ascensão pessoal e mentira pública? No limiar da soberania e do governo democrático.
Vejamos um fato jurídico e político. Só existe poder soberano no Estado de Direito, que detém três monopólios essenciais: os controles da força física (Exército, polícias), do excedente econômico (impostos, alocação de recursos para saúde, educação, segurança, ciência etc.), da norma jurídica. Sem um desses pilares, desaparece o Estado, surgindo hordas sem rumo, comandadas por líderes ditatoriais.
Por uma política estrábica, os mandatários brasileiros atentam contra a própria soberania, ao gerir os três fundamentos do poder. As Forças Armadas têm recebido tratamento incompatível com suas funções. O soldo é baixo, e o próprio rancho, em muitos quartéis, não é garantido. As polícias recebem salários miseráveis, como se os governos incentivassem a união entre meliantes e funcionários da segurança.
Não é preciso dizer algo mais sobre o monopólio do excedente econômico, dado que o núcleo da inadimplência, em Alagoas -nos outros Estados a situação é idêntica, vide os tratos do Rio Grande do Sul com a GM-, está num "acordo" entre Executivo e usineiros, raspando milhões dos cofres públicos.
No monopólio da norma jurídica, note-se como o Executivo trata o Judiciário e o Legislativo. Disse um personagem histórico: "Se o povo soubesse como se fazem as leis e as salsichas...".
A crise policial, que se alastra, atinge o centro do poder, ameaça o monopólio da força. Se existe culpa dos governos, não é lícito a nenhum democrata incentivar essa sangria do Estado.
Vicente Paulo da Silva e os setores da CUT por ele capitaneados operam na greve policial como pescadores de águas turvas. Se o líder operário estiver mesmo estudando, abra os livros de história em 1964. Cenário idêntico, o mesmo entusiasmo com a "unidade" entre sargentos, praças, camponeses, revolucionários. Tudo varrido, com o cabo Anselmo, no golpe de 1º de abril.
Sem Parlamento, caro Vicentinho, sua carreira perde sentido. Perde sentido, também, a vida democrática. Os Fujimoris de plantão ganham tudo num golpe. Os democratas perdem vida livre, justiça, direitos humanos.
É monstruoso o que se faz hoje, num tribunal, com José Rainha. Logo depois da sentença, que implode o Judiciário, ergui a voz contra ela, pelo rádio e pela TV. Apóio os sem-terra nas suas reivindicações. Mas o que eles fazem neste instante, ao pregar a derrubada do poder soberano, é irresponsabilidade.
Líderes dos sem-terra abraçam policiais. Dado um golpe, os mesmos agentes os prenderão, torturarão, matarão, sem nenhum recurso judicial. As vítimas não serão apenas as pessoas da CUT e do MST. Elas já surgem aos milhares, no horizonte.
Em Porto Alegre, numa prefeitura petista, povo e governo aprendem os difíceis caminhos do poder popular. Os trabalhos da Secretaria de Educação e de todas as demais, com o orçamento participativo, comovem os democratas verdadeiros. Pouco a pouco, os cidadãos adquirem idéia exata de sua dignidade. Se essas experiências correm perigo, pela ruptura do princípio federativo revelada no FEF, elas desaparecerão num golpe de Estado. Este só interessa às oligarquias, aos oportunistas, aos demagogos. Todos irresponsáveis.
Roberto Romano, 51, filósofo, é professor titular de ética e filosofia política da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).





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