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São Paulo, quinta-feira, 24 de julho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A espiral da cultura científica

CARLOS VOGT

Embora existam distinções teóricas e metodológicas fundamentais entre arte e ciência, há entre elas algo poderosamente comum. Trata-se da finalidade da criação e da geração de conhecimento por meio da formulação de conceitos abstratos e, ao mesmo tempo, por paradoxal que pareça, tangíveis e concretos. Na ciência essas características resultam da demonstração lógica e da experiência e, na arte, da metáfora e da vivência.
Por isso, a expressão cultura científica parece mais adequada que várias outras já utilizadas em tentativas de explicar o amplo e cada vez mais difundido fenômeno da divulgação científica e da inserção dos temas da ciência e da tecnologia no dia-a-dia de nossa sociedade.
Melhor do que alfabetização científica ("scientific literacy"), popularização/ vulgarização da ciência ("vulgarisation", "haute vulgarisation de la science") ou percepção/compreensão pública da ciência ("public understanding"/ "awareness of science"), a expressão cultura científica tem a vantagem de englobar tudo isso e ainda conter a idéia de que o processo que envolve o desenvolvimento científico é um processo cultural, seja ele considerado do ponto de vista de sua produção, de sua difusão entre pares ou na dinâmica social do ensino e da educação, seja de sua divulgação na sociedade, para o estabelecimento das relações críticas necessárias entre o cidadão e os valores culturais de seu tempo e de sua história.


Mudanças nos paradigmas científicos trouxeram consequências importantes para a cultura dos que fazem ciência


Mudanças nos paradigmas científicos trouxeram consequências importantes para a cultura dos que fazem ciência, dos que ensinam a fazer ciência e dos que buscam saber como e para quê fazê-la. Essas mudanças marcam, no plano geral dos valores que caracterizam as sociedades, a dinâmica do processo cultural da ciência e da tecnologia, conhecido como cultura científica e tecnológica. Como medir, avaliar e interpretar esse processo? Há um volume significativo de indicadores, questionários sobre percepção pública da ciência, estatísticas sobre os números de visitantes de museus voltados à ciência, estudos sobre sua ocorrência na mídia e, sobretudo, uma enorme vontade de definição desse processo, que a expressão cultura científica procura recortar.
A dinâmica da chamada cultura científica poderia ser mais bem compreendida se fosse visualizada como uma espiral, a espiral da cultura científica. A idéia proposta aqui é representá-la em duas dimensões, evoluindo sobre dois eixos, um horizontal, que representaria a evolução do conhecimento no tempo, e um vertical, que apontaria, numa dimensão espacial, o acúmulo do conhecimento de forma paradigmática. Nessa espiral seria possível estabelecer não apenas as categorias que a constituem, mas também os atores principais de cada um dos quadrantes que seu movimento vai graficamente desenhando e, conceitualmente, definindo.
A partir da produção e da circulação do conhecimento científico entre cientistas, a espiral evolui para o segundo quadrante, o do ensino da ciência e da formação de cientistas; continua, então, para o terceiro quadrante, em que se amplia no ensino para a ciência; e completa o ciclo, no quarto quadrante, para identificar aí a divulgação científica.
Em cada quadrante estão os elementos que contribuem para que melhor se entenda a dinâmica do processo da cultura científica. No primeiro, os próprios cientistas são emissores e destinatários da ciência; no segundo, cientistas e professores dirigem-se a estudantes; no terceiro, cientistas, professores, diretores de museus e animadores culturais da ciência destinam conteúdos científicos a estudantes e a um amplo público jovem; no quarto quadrante, jornalistas e cientistas seriam os emissores -e, aqui, os destinatários seriam constituídos pela sociedade em geral e, mais especificamente, pela sociedade organizada em suas diferentes instituições, principalmente as da sociedade civil, o que tornaria o cidadão o destinatário principal dessa interlocução da cultura científica.
Ao mesmo tempo, outros atores aparecem nos quadrantes. Universidades, centros de pesquisa, órgãos governamentais, agências de fomento, congressos e revistas científicas estão no primeiro; no segundo, acumulando funções, outra vez as universidades, o sistema de ensino fundamental e médio e o sistema de pós-graduação; no terceiro, os museus e as feiras de ciência; e, no quarto, as revistas de divulgação científica, as páginas dos jornais voltadas ao tema, os programas de TV etc.
Importa observar que, nessa forma de representação, a espiral da cultura científica, ao cumprir o ciclo de sua evolução, retornando ao eixo de partida, não regressa, contudo, ao mesmo ponto de início, mas a um ponto alargado de conhecimento e de participação da cidadania no processo dinâmico da ciência e de suas relações com a sociedade, abrindo um novo ciclo de enriquecimento e de participação ativa dos atores, desde que não haja descontinuidade no processo de sua evolução.
Como resultado do movimento que a espiral da cultura representa, nascem instituições voltadas para as questões de ciência e tecnologia com fortes componentes de participação da cidadania, como é o caso, no Brasil, da CTNBio e de suas atribuições regulativas no que diz respeito à biodiversidade. O que, enfim, a espiral da cultura científica pretende representar é a dinâmica constitutiva das relações inerentes e necessárias entre ciência e cultura.

Carlos Vogt, 60, poeta e linguista, é vice-presidente da SBPC e presidente da Fapesp. Foi reitor da Unicamp (1990-94).


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