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São Paulo, quinta-feira, 24 de julho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A esquerda em convalescença dialética

CANDIDO MENDES

Na visita a Londres, Lula defrontou a perplexidade do dr. Giddens, inventor da maravilha curativa da "Terceira Via"; vimos rotulada a sua legenda de "New PT", como timbre original da esquerda em processo, hoje, no Planalto. Marco Aurélio Garcia entendeu-a, aqui na Folha (pág. A3, 14/7), como um movimento que supera tanto o neoliberalismo quanto a social-democracia. Delineia-se, também, pelo confronto externo, na liderança cada vez mais clara de Lula, diante do fechamento hegemônico americano.
Davos, Evian e agora Londres são as marcas dessa voz emergente, já sentida pelas neo-satrapias da Europa Oriental, a partir da Bulgária e da Polônia. Mais ainda, podendo ter um frente-a-frente com o presidente M. Becki, da África do Sul. O outro continente subdesenvolvido sabe que não pode mais escapar do assistencialismo americano, mais ou menos benigno, na fila do pacote alimentar e do tratamento da Aids.
Devemos a Tarso Genro, nesta mesma página (18/5), o delineio até agora mais instigante do que seja um PT que não renuncia aos seus nortes e esposa, ao mesmo tempo, toda a prática inovadora de ser poder, com as transações inevitáveis entre a estabilidade imediata e a perseverança de projeto político no risco de contradições no seu percurso. Vencê-las é agora uma tarefa de convalescença dialética. O primeiro suposto é o de que o governo conservará a frente vasta da eleição fulminante de outubro. Acolheu o sistema, com todo o realismo, a idéia de que as mecânicas clientelísticas possam ser usadas "para o bem".


Acolheu o sistema, com todo o realismo, a idéia de que as mecânicas clientelísticas possam ser usadas "para o bem"


Tarso defende uma transição da modernização conservadora ao novo modelo. Mas, aceita a premissa da máxima negociação, até onde se está nessa pauta histórica da mudança -essa transição- que supõe saltos e cortes para o avanço social? Na verdade acabamos aterrissando numa evolução, que só abre guarida para o mais conformado dos reformismos. É para onde levaria o segundo pressuposto do dito "New PT" para alguns, que afirma a necessidade de preservar a segurança da classe trabalhadora, "à sombra do direito e da lei", "como valor fundamental de suas vidas cotidianas". Tal postulado estabelece uma tensão inevitável entre o incluído e o excluído, na medida em que o último a entrar no mercado e nas suas garantias é o primeiro a trancar a porta para o segmento que lhe sucede.
A suposição, a de um neoconservadorismo do grupo visto como motor da mudança, leva a uma conclusão implícita: a do antagonismo crescente com os setores da grande marginalidade social, a partir dos "sem-terra" e, todos, objeto da primeira prioridade na plataforma com que Lula foi ao poder. Como se pode, nesse caso, pensar, a partir dos freios reforçados de dentro do regime, num projeto transformador da realidade?
Argutamente o pensador gaúcho entende que o impasse não elimina a tensão dialética do regime. Esta se transporta à união de todos, no combate ao capitalismo especulativo. Não foi outra a primeira vitória, neste semestre, pelo tandem Palocci-Meirelles, no abate do câmbio delirante, de par com a quebra do surto inflacionário.
O drama na globalização hegemônica é que só se sai do especulativo para cair no conjuntural. O caminho estreitíssimo é o da folga que conseguirmos internamente nessa camisa-de-força. E o trunfo é a recuperação do desperdício do antigo sistema; da sua irracionalidade; da efetiva subcapacitação fiscal e dos excessos de benesse dos superincluídos, no regime de todo o sempre. O tento de Lula foi, de imediato, quebrar o imobilismo pelas reformas, alterando o excesso tributário da classe média, enfrentando a benesse comparativa do funcionalismo público frente os marginalizados, pondo cobro à sistemática da subimposição e evasão dos "mais incluídos".
Ao sucesso "conservador" de Palocci soma-se o começo de bom sangradouro das reformas que se deslancham já ou, de vez, o governo se torna passa à cara do regime do tucanato, como o reconhecem os prontuários da performance periférica. Vivemos uma solidão internacional hoje, para dar conta do começo de novo modelo, não obstante todas as expectativas de que o sucesso superaplaudido já, lá fora, não tem outra sequência que a do neoliberalismo. Não é outra a rima, na cartilha cada vez mais rígida em que o mundo pós-Iraque passou, de vez, da mundialização plural, à hegemônica, como salientado agora em Londres diante de Tony Blair.
Na pauta depredada de alternativas, não há mais socialismo, mas uma social-democracia cada vez mais rala, qual a do mundo europeu pós-rendição econômica, subsequente à Guerra do Iraque. A nossa chance da diferença, nessa espiral de um futuro, vai depender desse trunfo, só de Lula, ao fazer do apoio popular uma mobilização coletiva e, desta, um mutirão histórico. O futuro do novo vai passar pelo condão que tem o presidente de temperar entre a impaciência da espera geral e a pressa de tornar irrevogável o que faça, já, o governo. A nossa esquerda em processo avança por aí, e a prazo curto, antes que o nosso futuro seja passar a limpo o neoliberalismo e seus hematomas, em tantos recomeços do mesmo.

Candido Mendes, 75, é presidente do "Senior Board" do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco, membro da Academia Brasileira de Letras e reitor da Universidade Candido Mendes.


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