São Paulo, quinta-feira, 24 de julho de 2008

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TENDÊNCIAS E DEBATES

Ruth e os benefícios do rigor

JORGE DA CUNHA LIMA


Todos queriam, ainda que por um momento fugaz, fazer parte desse espaço moral que ela representava com seus princípios

A MULHER do meu motorista, ao ver a imagem de Ruth Cardoso na televisão, disse ao marido que gostava muito daquela mulher porque ela era uma mulher de confiança. Creio que os milhares de pessoas que passaram pelo velório da Sala São Paulo para homenageá-la também acham que Ruth era uma mulher de confiança, no mais profundo sentido popular.
Passado um mês de sua morte, podemos avaliar o significado das homenagens unânimes que ela recebeu. De fato, nunca vi tanta gente assim diversa, com interesses políticos conflitantes, com ideologias divergentes, com engajamentos políticos tão opostos e de classes sociais tão distantes quanto no enterro de Ruth Cardoso.
E todos tinham em comum a admiração por essa mulher, antropóloga de formação e fundadora da Comunidade Solidária pela contingência de ter sido a primeira-dama deste país.
Estiveram na Sala São Paulo, em seu funeral e em sua missa de sétimo dia todo o comando político deste país, desde os ajudantes de ordem até o presidente da República, ministros, representantes do Congresso, governadores, prefeitos, intelectuais, amigos e adversários políticos. Todos a louvar na morta as mesmas virtudes da coerência e do rigor.
Marta Suplicy me disse que foi nas quartas-feiras da casa de Ruth que se consolidou o movimento feminista brasileiro. Outros, mais antigos, disseram que nas reuniões de estudo sobre "O Capital", de Marx, se consolidou o hábito da reflexão política num grupo de acadêmicos notáveis de sua geração, como José Arthur Giannotti, Fernando Henrique Cardoso e Roberto Schwarz. Todos reverenciaram sua grandeza política e profundidade intelectual. Do governador Aécio Neves, do PSDB, ao presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia, do PT, todos exaltaram o trabalho de Ruth, que inaugurou um novo tratamento da questão social no Brasil.
Mas não foram apenas os louvores dos políticos que ecoaram para a imprensa presente. Foi a própria imprensa que lhe dedicou páginas incontáveis e raras, raras porque se referiam às virtudes.
Lula teve a sensibilidade de levar ao enterro os empregados que conviveram mais de perto com Ruth no Palácio da Alvorada e que estavam muito tristes com sua morte. Amigos, orientados, ela os teve muitos, e assistentes da Comunitas choravam com uma saudade antecipada. Serra, de costume reservado, não escondeu a emoção diante da única pessoa que lhe dava conselhos, sem réplica. Para exorcizar a tristeza, socorreu-se dos versos de Manuel Bandeira, que leu com emoção em sua missa.
Para mim, Ruth tinha uma característica muito pessoal: a prevalência dos princípios. Não transigia com os interesses nem com a psicologia. Não transigia com as exigências implacáveis da conjuntura política. Não transigia com seu estado civil, mulher do presidente. Não transigia nem com as declarações coloquiais, tão solicitadas pela mídia.
E é isso que faz a diferença e nos dá uma lição definitiva.
Todo mundo em política pensa que a gente agrega fazendo concessões, distribuindo favores, nomeando, dando empréstimos, liberando verbas, dividindo as decisões que só nos pertencem e abrindo os cofres que só pertencem à sociedade inteira.
Pois todo mundo se uniu em torno de Ruth Cardoso, em sua morte, exatamente porque ela representava o contrário disso. Todos queriam, ainda que por um momento fugaz, fazer parte desse espaço moral que ela representava com seus princípios.
Compor-se em torno de outros dutos não apraz a ninguém, nem aos mais empedernidos canalhas. No fundo de cada homem há uma nostalgia da decência, e esse é o caminho mais adequado da composição política. Eis o sentido do luto por Ruth Cardoso.
Para nós todos, Ruth foi a intelectual que não se pejava desse privilégio. Atuava na cozinha com esmero quando tinha o pretexto de reunir amigos e comensais. Dava à família o carinho que combina tanto com a compostura. Gostava de quadros bonitos e móveis com bom desenho, mas de nada que exalasse riqueza.
Assim, a menina de 15 anos veio para a metrópole, contra a vontade dos pais, a estudar no "Dès Oiseaux", para mais tarde receber as honras do Estado, o respeito do povo e dos políticos, o amor da família e dos amigos. O que mais poderia desejar para morrer na plenitude?


JORGE DA CUNHA LIMA , 76, jornalista e escritor, é presidente do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta e vice-presidente do Itaú Cultural.

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