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São Paulo, domingo, 24 de agosto de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A razão vencerá o terror

PAULO SÉRGIO PINHEIRO

Na entrada monumental da antiga sede da Sociedade das Nações, em Genebra, a fileira de mastros está sem as bandeiras dos 192 países. Lá no telhado tremula, solitária, a bandeira azul da ONU, a meio pau. As rádios e televisões repetem implacavelmente que Sérgio Vieira de Mello se foi. Que triste sina, diz a balada de W.H. Auden, "morrerem entre nós os que estavam fazendo algo de bom, sabendo que nunca era o bastante, mas que esperavam melhorar a existência na Terra. Façam os cachorros pararem de latir, cubram-se todas as lâmpadas com crepe, que o indecente céu azul espetacular sobre o lago Leman se escureça".
No mundo de hoje, o pior está por vir e vem mesmo sem nenhuma comiseração. E, às vezes, no mesmo dia, como o atentado contra a sede da ONU em Bagdá e a bomba terrorista, matando crianças e civis inocentes num ônibus em Jerusalém, que logo será seguida pela retaliação contra a população palestina.
Por que a morte de Sérgio Vieira de Mello é uma catástrofe? Pessoa nenhuma é insubstituível, mas alguns são mais difíceis de substituir. Apesar de seus mais de 30 anos na Europa e de ser radicado na Suíça, com seus dois jovens filhos, ninguém mais brasileiro e ainda por cima tão carioca como ele. Na espontaneidade, no senso de humor, no olhar acesíssimo, sempre brilhante. E seu amigo Richard Holbroke, o antigo embaixador dos EUA na ONU, abatido, lembrava carinhosamente que ninguém era mais elegante do que Sérgio.
Era um formidável profissional, mistura rara de diplomata experimentado e homem de campo, capaz de enfrentar operações humanitárias complicadas com dedicada compaixão pelas vítimas. Tudo fundado na longuíssima experiência direta no Alto Comissariado de Refugiados da ONU, o ACNUR .
Sérgio sempre esteve nos antípodas do circuito Elizabeth Arden (Londres, Paris e Nova York) da diplomacia, servindo em Bangladesh, Sudão, Chipre, Moçambique, Líbano, Peru e Camboja. Dificilmente alguém poderia ter sido mais bem-sucedido do que ele no Timor Leste ou no Kosovo, lugares onde fora o administrador da ONU.
No prédio do Alto Comissariado de Direitos Humanos, o ambiente é de completa desolação. Depois do 11 de setembro de 2001, a luta contra o terrorismo muita vez tem contribuído para que os direitos humanos sejam colocados no banco de trás. Ainda ecoam as palavras do alto comissário, conclamando a Comissão de Direitos Humanos, em março passado, a fazer prevalecerem os interesses das vítimas de violações.
Seu trabalho em Bagdá era decisivo para a comunidade internacional, para os EUA e para o futuro do Iraque. Foi ele quem convenceu os americanos de que nada adiantaria o conselho ser apenas decorativo e que era imperativo que ele assumisse logo funções políticas mais bem definidas. Tudo fez para que logo a população local pudesse controlar seu próprio destino. Corajosamente, insistia que a ocupação deveria ser a mais curta possível.


O alvo visado pelo atentado que matou Sérgio não era ele, nem principalmente a ONU, mas os EUA


Não há a menor dúvida de que os EUA e o Reino Unido, com seus aliados, ao passarem ao largo do Conselho de Segurança, contribuíram para pôr em xeque a autoridade das Nações Unidas. Mas é história passada. Hoje o grande problema é que essas mesmas potências ocupando o Iraque continuam se recusando a atribuir à ONU uma presença mais decisiva na reconstrução do país. Ao se cercear a ONU, inviabilizam-se ações que respondem aos objetivos da luta pela paz e pelo Estado de Direito, lesando interesses não somente da comunidade internacional, mas dos próprios EUA. A série rotineira de atentados terroristas no Iraque tem demonstrado que um exército de 170 mil homens está fadado a ficar inerme (sofrendo baixas) diante da guerrilha e dos terroristas.
Cada dia da ocupação norte-americana e britânica do Iraque torna mais evidente não haver outra solução para o impasse naquele país que não a intervenção efetiva da comunidade internacional, sob a égide da ONU.
A esperança é que esse atentado possa servir para motivar os EUA e, especialmente, o presidente Bush a fazerem uma profunda reflexão sobre o que a política de seu governo tem feito em relação à ONU. Está patente que qualquer iniciativa que vise enfraquecer a ação da ONU fragiliza o mundo. Apelemos com grande clareza e franqueza aos nossos amigos norte-americanos: não se enganem, o alvo visado pelo atentado que matou Sérgio não era ele, nem principalmente a ONU, mas os EUA.
Na impossibilidade de atacar os edifícios muito bem protegidos da administração norte-americana, os criminosos terroristas preferiram um alvo mais fácil, um prédio sem nenhuma proteção externa. Premonitoriamente, fazia poucos dias, Sérgio Vieira de Mello dizia, perante o Conselho de Segurança, em Nova York: "A presença da ONU no Iraque continua vulnerável a quem quer que queira atacar nossa organização".
Fez muito bem o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em determinar três dias de luto pela morte desse brasileiro exemplar, deixando claro o compromisso de seu governo e do Brasil com a luta pelos direitos humanos e pelos sem poder. A melhor resposta aos terroristas é continuarmos as generosas lutas de Sérgio. Consolidar e apoiar sem hesitação a ampliação da ação da ONU, afirmar sua presença no Iraque, continuar a luta pelos direitos humanos, fazer a razão prevalecer sobre terror.


Paulo Sérgio Pinheiro, 59, é expert independente das Nações Unidas para a Violência contra a Criança. Foi secretário de Estado de Direitos Humanos (governo Fernando Henrique).


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